Elogio a Seo Márcio (Meirelles) – parte 2
Recebo de uma amiga a versão integral do elogio que a revista Carta Capital do mês passado havia feito a atual gestão da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (mas Mário Kertzs, o Política Livre o blog De Rabo Preso e Aninha Franco são contra). A Carta disponibilizou esse mês. Como já havia publicado mês passado a primeira metade da reportagem (que a Carta sempre libera gratuitamente), vai aqui o restante:
Mas o retorno (de Solange Farkas), em 2006, veio acompanhado de um susto e tanto. “Sofremos um tremendo ataque. Depois de 30 anos de um sistema político de privilégios, de uma Bahia ensimesmada, fechada, chegar alguém de fora para comandar um museu parecia uma grande agressão”, relata. “Tudo o que fazíamos parava na mídia. Minha agenda pessoal chegou a ser divulgada. Havia um espírito de delação e até telefone grampeado eu tive. Às vezes parecia que eu estava numa novela da Globo e ia aparecer o Odorico Paraguaçu.”
No MAM, o que encontrou foi uma reserva técnica com obras empilhadas e duas galerias fechadas para servir de depósito. Dada a proximidade do mar e a falta de proteção das salas – que nem sequer ar condicionado possuíam –, 70% do acervo estava comprometido. Atualmente, as obras estão abrigadas fora do Solar e, até o fim de 2010, deve ser inaugurada a nova reserva. “Também descobri, quando decidi tirar as obras de lá, que não estavam catalogadas”, diz Solange. Havia, à altura, um computador e 180 funcionários. “Hoje são 130. Mas que vão todos os dias são uns 80. O Estado tem uma estrutura paquidérmica.”
A situação do MAM, longe de ser exceção, apenas demonstra o que aconteceu à cultura baiana, em termos institucionais, durante os anos ACM. “As artes não eram diferentes da política”, resume o jovem diretor de cinema e videoartista Daniel Lisboa. “Vivíamos os tempos de panelas, guetos, indicações, nepotismo e muita corrupção. Pelos corredores dos órgãos públicos responsáveis pela cultura o que se via e sentia eram medo, rabos presos e silêncio.” Lisboa sentiu na pele o coronelismo ao criar, no final da era carlista, o Movimento Anticordial (MovAC), que pregava o “fim do Homem Cordial”. Ao fazer um vídeo que simulava o sequestro de ACM, em tom jocoso, ele e seu grupo sofreram censura e ameaças.
Solange Farkas, com o olhar de quem passou anos fora, diz ter a sensação de que, hoje, acontece na Bahia o que aconteceu no Brasil pós-abertura política. “O ACM, sutilmente, fez os baianos acreditarem que não precisavam do resto do Brasil, que a cultura deles se bastava. Ele também forçou um estereótipo que tem a ver com casa-grande e senzala, com a subserviência. Paulista gostava de vir aqui e ser chamado de ‘meu rei’, mas é complicada a origem disso”, avalia. Inclui-se nesse espírito o famoso slogan “Sorria, você está na Bahia”, e a radical associação da cultura aos interesses turísticos.
Tanto era assim que a cultura não merecia nem sequer uma pasta. E, em vez de estar vinculada à educação, como em outros lugares, estava subordinada à Secretaria de Turismo. Foi apenas em 2006 que um dos maiores estados brasileiros ganhou sua Secretaria de Cultura. O secretário Meirelles, acusado, quando assumiu, de ser contra o axé, diz que o Fundo de Cultura, que beneficiava 40 projetos por ano, hoje contempla cerca de 200. “O Fundo só servia ao governo e a instituições quase paragovernamentais”, afirma.
“Vivemos, aqui, a reprodução do que aconteceu em nível federal, quando o Ministério da Cultura começou a pregar a descentralização de recursos do Sul e Sudeste e o benefício a um maior número de produtores”, compara Meirelles. Os produtores estabelecidos levantaram-se, por exemplo, contra os editais públicos e a criação de programas para o interior do Estado.
“O interior estava completamente abandonado”, diz o artista plástico Ayrson Heráclito. “O salão do MAM, até por obrigação legal, chegava às pequenas cidades, mas os centros culturais eram verdadeiros elefantes brancos. Recebiam o salão e passavam o resto do ano vazios. Não tinham nem paredes para pendurar quadros.”
Após dois anos sem ACM, a classe cultural baiana parece, cada vez mais, tomar consciência do processo em que estava metida. E, se havia o nó institucional – ainda longe de ter sido totalmente desfeito –, existia também a questão simbólica, que levará muito tempo para ser realmente compreendida e modificada.
“Criou-se uma imagem de Bahia na qual eu, por exemplo, não me reconhecia”, admite o cineasta Sergio Machado, de Cidade Baixa, outro dos que construíram carreira fora do estado, mesmo mantendo relações e raízes. Machado lembra que a Bahia foi o último grande estado a tomar parte da retomada do cinema brasileiro. “Ficamos mais de vinte anos sem produzir um longa-metragem. Como todos sabíamos que as decisões passavam pelo ‘quem é amigo de quem’, o mérito foi deixando de ter valor e perdeu-se o estímulo.”
Machado diz que a mudança de prumo na política cultural do estado pode ser pressentida numa simples ida à secretaria. “Antes, ali, tinha a sensação de que não estava no lugar certo. O diálogo era incômodo, era como se eu estivesse pedindo alguma coisa à qual não tinha direito”, observa.
Também os jovens artistas pareciam não ter direito de fazer qualquer coisa em mão diversa daquela seguida por figuras lendárias como Jorge Amado, Carybé ou Pierre Verger, incorporados e reaproveitados de maneira a criar a tal baianidade que, de certo modo, virou uma Bahia “para inglês ver” – basta lembrar da desastrosa “limpeza” do Pelourinho. “A Bahia vivia quase uma monocultura”, resume Meirelles. “Estamos trabalhando para mostrar a diversidade que sempre existiu, mas ficava escondida.”