Um Estado sem princípios
Quando vejo a retomada, trinta anos depois, da política de limpeza étnica israelense, não me ocorre as questões que creio ocorram à maioria: que a paz no oriente médio só será possível com a solução da questão palestina (não concordo, inclusive porque na década de 40 se dizia o mesmo da questão judáica); que a população judia em geral não concorda com tais ataques; ou ainda que o principal cerne é o petróleo, de interesse americano.
A mim, ocorre uma questão psicanalítica (isto é: arqueológica), talvez por força da escolha profissional que fiz: de onde se tirou esse idéia estapafúrdia de que precisava haver um “Estado Judeu”?! A quem ela interessa? A que vissicitudes psíquicas, dos judeus e dos não-judeus, este acting out de 50 anos satisfazia em 1946?!
Vamos pelos argumentos usados a favor da criação do Estado de Israel. Como todo argumento consciente, racionalizado, ele me cheira a resistência, a desmentido do recalque, a denegação. O primeiro de sempre é o direito histórico dos judeus àquela terra, e diáspora no lugar de sua contraparte. Ora, os judeus sempre foram um povo nômade. Raras vezes se unificaram. Não permaneceram na terra de Canaã, como estado autônomo, por mais de 500 anos, intermitentes entre os dois exílios! Já os palestinos estão lá, e como estado autônomo (ou como califado), a 1500 anos seguidos!
Freud, um judeu convicto enquanto sua inserção étnica (e cético do ponto de vista religioso), afirmou as mesmíssimas coisas no seu derradeiro livro, Moisés E A Religião Monoteísta. Nele, mostra como os judeus têm por hábito ficcionalizar sua própria história, escassíssima de registros materiais (diferente dos gregos, egípcios, romanos, etc.), de um modo bastante narcísico. Claro, vê nisso uma necessidade peremptória: um elevado amor-próprio, junto com uma exigência de abstração radical (um deus único de pura concepção matemática) foram fundamentais para manter a unidade durante a diáspora – e, como efeito colateral, os colocou nessa posição vitimizada de “povo escolhido”. Escolhido para a Salvação, mas escolhido também para o Holocausto.
Sou anti-sionista por convicção – e porque sou pró-semita. Porque sei, junto com Spinoza, Freud e Einstein, a inolvidável contribuição que os judeus e o judaismo trouxeram para a civilização ocidental e européia, é que sou contra um “estado judeu”: quero que os judeus façam parte da civilização, em diálogo de igualdade e colaborativo, tanto quanto os católicos, os protestantes, os muçulmanos, os budistas e os yorubás. A diáspora, longe de ser um acidente posterior e desastroso, é uma benesse constitucional do judaismo – é o que eles têm de melhor e deveriam abraçar.
Posso falar disso com toda justeza do mundo. Moro na cidade deste planeta que por mais tempo recebeu mais escravos de uma mesma raça (a negra) – mas não de uma mesma etnia. Em São Salvador da Bahia de Todos os Santos vieram negros bantos kibundus (para o trabalho nas lavouras), yorubás nagô (de ascendência aristocrática, para o trabalho doméstico urbano nas altas castas da administração estatal portuguesa) e malês hauçás (muçulmanos, para o trabalho nas pequenas manufaturas). Na minha cidade, se veste branco na sexta-feira para se louvar Senhor do Bonfim, Oxalá e Alah, de uma só vez. O meu estado é hoje governado por um judeu praticante – que não esquece as bençãos de Makota Valdina dizendo ser ele “o quarto filho de Oxalufan a governar a Bahia” (os outros foram Octávio Mangabeira, Landulfo Alves e Antônio Carlos Magalhães).
Aqui, casas de famílias católicas comemoram a Páscoa (uma data aliás originalmente semita) com banquete para Oxóssi: caruru, vatapá, muqueca de arraia, feijão de leite – e nem se dão conta que estão ali também louvando o orixá da fartura, do trabalho e da alegria (que, com muito orgulho, rege a cabeça deste ateu convicto que vos escreve).
Esta cidade é chamada Capital da Diáspora – de uma diáspora mais curta, no entanto mais severa, que a judáica: a diáspora negra. E se orgulha do não sectarismo – ninguém pensaria a sério na criação de um “estado Yorubá” – embora qualquer soteropolitano minimamente esclarecido fale com orgulho miticamente saudoso dos mil anos de prosperidade dos reinos de Oyó, Ifé e Benin-Daomé.
Oxalá Jerusalém possa um dia também ser chamada Capital da Diáspora. E Salvador, ao invés de Roma Negra, ganhe o apelido de Jerusalém Ocidental.
Há outros interesses na criação de um “Estado Judáico”, e justamente onde é. O anti-hebraismo não foi parte apenas do nazi-facismo, mas da cultura européia do início do século XX. Criar um tal estado servia ao mesmo tempo de “pedido de desculpas” por este sentimento, e de satisfação desse mesmo sentimento. Algo como: “manda esse bando de judeu pra lá onde eles querem que eles param de enxer o saco, e aproveitam se matam mutuamente com os árabes”.
Não há nenhum interesse ocidental, do ponto de vista do inconsciente, em terminar a querela judaico-palestina que aliás o próprio ocidente intencionalmente criou. Ela é um sintoma, uma formação de compromisso, ela serve a economia psiquica coletiva: é um incentivo ao genocidio mútuo, para que a europa não mais tenha de sujar suas mãos.
Mas, lembro: os judeus participaram desse contrato, desde os primórdios dos tempos, tanto quanto aqueles que os perseguiram. A satisfação é sado-masoquista, e, assim, mútua. Os palestinos, estes sim, entraram de gaiatos no navio.
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