Glauber Rocha com pipoca?!
Sim, inaugurou finalmente o Unibanco ArtePlex Salvador – Glauber Rocha. Com cinco anos de atraso, diga-se. CINCO anos!
Fui ontem ver qual era e assistir ao Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Sessão das 14h, chego às 13h e 45min para comprar ingresso antes e tomar um café. Tudo trancado e o segurança me diz que só pode entrar duas horas. “Mas o filme é duas horas da tarde. Não posso comprar ingresso antes?” “Não”. Depois de eu bradar que não era possível que com cinco anos de atraso, ainda se fizesse grosseria assim, me deixaram entrar.
Café? “Só abre duas horas”. Novamente: “Mas o filme é duas!”. “Paciência…”, foi a resposta. E eis que comprei uma pipoca enorme, dessas de multiplex, e fui assistir Glauber Rocha, no cinema que leva seu nome a três décadas, comendo pipoca.
Ver Glauber comendo pipoca (e sem conseguir tomar um espresso antes) é uma metonímia da concepção de ArtePlex, e do efeito de um ArtePlex em Salvador.
O problema do cinema no mundo, e especialmente no Brasil pois neo-liberalismo e pós-expansão urbana desordenada, não é de cinema de arte X cinema de indústria (todo cinema é indústria, sem o que não pode ser arte, e é arte, sem o que não pode ser indústria – essa dupla face Walter Benjamin já tinha mostrado em A Obra de Arte Na Era De Sua Reprodutibilidade Tecnológica); ou uma oposição semi-falsa de cinema de autor X cinema de estúdio (há autor individual, mais meritório que a autoria coletiva da indústria. Mas, por exemplo, os filmes políticos da Warner dos anos 50, tem como autoria a Warner ou John Huston? o Estúdio, ou seu então gestor visionário Darryl Zanuck?). Ou ainda, uma parte articulada menor desta oposição: o cinema nacional ou brasileiro X cinema americano (note-se que o cinema europeu nem entra na jogada, e não há pensar um cinema internacional em oposição ao nacional. Por outro lado, ainda resta mostrar que haja um cinema brasileiro: há filmes brasileiros, e já houve duas vezes um cinema brasileiro. Hoje não). Não obstante, a questão da nacionalidade fílmica é, antes de política, estética – e não apenas para o terceiro-mundismo emergente nosso de-cada-dia-nos-dai-hoje.
Na verdade o problema no cinema do Brasil, como bem disse Prof. André Setaro em Dos Sem Cinema, é de acessibilidade. Há algumas décadas, quase qualquer bairro ou cidade pequena tinha sala de exibição a preços convidativos. Com as multi-salas, tudo se concentrou em capitais e grandes cidades, em zonas centrais, com prédios que concentram diversas salas, a preços altos (justificados pela sua suposta alta tecnologia em projeção). E, Setaro não diz mas digo eu, isto cria um problema: o cinema é degustado como fast-food, não como iguaria. O sujeito vai ao cinema não pra ver este ou aquele filme, e sim pra ver o que der pra ver: como um refrigerante visual pra acompanhar o sanduíche.
Salvador, há quase uma década, reverteu este processo em parte, e aos poucos, com o surgemento do Circuito SalaDeArte. Já disse e repito que o mérido da SalaDeArte não é investir em cinema “de arte” ou “de autor”, apenas ou principalmente – é reinserir o cinema no bairro, com acesso ao rés da rua, pedestre, de modo que cada sala do circuito tem características próprias que nada tem a ver com outra sala. O Cinema do Museu, classudo e discreto com seu painel de Juarez Paraíso no Museu Geológico do Estado da Bahia; o do MAM Solar do Unhão, com bancos de ripa na sala de espera, adolescente e levemente maconheiro; o Cine XIV, no Pelourinho, brejeiramente agringalhado; os vãos modernistas do Cine UFBA, no meio do Campus do Vale do Canela projetado pelo Magnífico Edgar Santos e por Diógenes Rebouças; e por aí vai.
Com isso, mudou-se o hábito de ir ao cinema em duas direçãos: primeiro, ninguém vai na SalaDeArte pra ver qualquer filme – este está previamente escolhido. E por vezes vai-se lá não para ver filme, e sim para ler revistas (eu lia a Bravo! lá, quando a Bravo! prestava), ver gente, paquerar, tomar um café. Chega-se no cinema antes, ou fica-se depois, para um papo e um lanche; se não se fica, certamente se vai a outro lugar cool para um papo e uma bebida (vinho ou café). O cinema, lá, é degustado.
Isto, já disse, teve efeitos nos próprios multiplex da cidade (que se viram obrigados a fazer sessões de filme de autor) e na estatal Sala Walter da Silveira (que revigorou a programação, na época em que a SalaDeArte surgiu, e passou a lotar).
O ArtePlex Glauber Rocha jamais terá esse efeito. Ele é um fast-food metido a cult. É como se a McDonald’s lançasse um “Mc Caviar”. Nem todo ArtePlex precisa ser assim: o da Rua Augusta, em Sampa, funciona muito mais como um cinema de bairro. Curioso é que o idealizador do Glauber Unibanco é Cláudio Marques, editor do antigo jornal e hoje blog Coisa de Cinema, onde Setaro publicou o citado artigo (nos duros tempos em que só tinhamos a Sala Walter). Cláudio sabe melhor do que eu que o cinema de bairro, descentralizado e de sala única é a solução “artística” e, va lá, de esquerda – excelente crítico de cinema que é. Só que ele se apresenta como o Fernando Henrique Cardoso do cinema bahiano: pensa uma coisa, e executa seu exato oposto!
Claro, há meritos: as sacadas do Unibanco Glauber, com vista para a escarpa da baía de todos os santos (na mão do poeta Castro Alves, onde o sol se levanta e a lua se deita) e pra Igreja (reformadaça!) do Vale da Barroquinha e pro Alto de Nazaré, são de chorar de lindo! (reconheça-se: Salvador é uma obra-de-arte.) Em uma delas haverá (quando?) um bistrô – só espera-se que não demore outros cinco anos para tal…
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