Ensaio sobre a Paciência (ou: de Boa Viagem à Amaralina)
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Como sou bahiano, aprendi de menino que paixão e gripe se cura no iodo do sal do mar. Acordei hoje cedo e fui a uma praia com piscinas naturais entre as rochas, que ficam atrás de uma falésia, quase deserta. Nas piscinas, com agua no nariz se via claramente o dedão do pé, tão transparente era; e ao redor de mim nadavam acarás tigrados e azuis. No caminho pelas pedras, tapetes ora de algas-alface, ora de pinaúnas (pros não-bahianos: ouriços negros do mar), e entre as pedras fugiam legiões de baratinhas-de-praia.
Onde é isso? Cancun? Tailândia? Praia do Forte? Não: centro expandido de Salvador, no miolo do Rio Vermelho, um dos maiores bairros boêmios do país. Chama-se Praia da Paciência, e o morro de que falei é onde fica o antigo hotel modernista Enseada das Lajes (com projeto de Diógenes Rebouças, azulejos de Udo Knofler e Caribé, baixos-relevos de Calazans Neto, e onde já se hospedaram Juscelino Kubitchek e Jânio Quadros), hoje residência da cantora Gal Costa.
Esse é mais um episódio que me confirma uma falácia turístico-arquitetônica sobre Salvador: a de que ela tem uma orla medíocre, com praias ruins. Isso é verdade para a orla atlântica, quase tão ruim quanto a de Recife. Mas como tudo mais em Salvador que fica para-além de Amaralina, ao Norte, não é Salvador, mas um arremedo de São Paulo (ou Brasília) com mar. É o antro do carlo-axezismo até mesmo no recorte urbano, plano e carro-dependente – quando Salvador, a de verdade, entre Amaralina e a Ribeira, é pedestre e barroca.
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A miríade de praias enbevecedoras que há da barra da baía de Todos os Santos até o interior do Recôncavo é incrível! Hoje acordei sem saber onde ir. Sabia que não queria ir ao Porto da Barra, hiperbadalada, muita galinhagem, embora seja tida pela The Guardian como a melhor praia urbana do mundo, e a terceira melhor praia do mundo onde quer que ela esteja. Pensei em Boa Viagem (na Cidade Baixa), que, nas costas da baía, quase no subúrbio, dá pra ver a penísula de Salvador inteirinha ao longe, a escarpa da Vitória, a cidade velha, a ladeira da contorno, até a pontinha do Farol da Barra.
Aí olhei pro céu pra ver onde estava sol. Cidade Baixa e Barra nublado. Pensei: Rio Vermelho. Só que não queria a Praia do Buracão, isolada mas de mar agitado. Fui experimentar a Paciência, e é de delirar…
O Rio Vermelho sofre preconceito por suas praias. Duas delas (a do Mercado do Peixe e a de Santana) são imundas por causa da colônia de pescadores e da foz do poluído Rio das Tripas. E eis outra vantagem da maior baía do hemisfério sul: ela é auto-limpante! As correntes de Todos os Santos levam os detritos, especialmente os orgânicos, para os mangues do interior do Recôncavo, em Saubara.
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Insisto que Salvador precisa inverter seus vetores. O que ela tem de melhor é o que, autêntica, só ela tem: uma cidade no alto das montanhas na beira de uma baía enorme, naturalmente limpa, de águas translúcidas, parada e morna. É um dos motivos pelos quais Salvador não é Nordeste – e por outro lado é, nesse aspecto, tudo o que o Rio de Janeiro queria ser e não é. Salvador é uma belíssima mulata, que todo mundo fala mal por não ser loira.
De quebra, as praias entre Amaralina e Itacaranha (no Subúrbio Ferroviário), em geral mais limpas e balneáveis que da orla norte, têm vistas urbanas de matar! No Porto da Barra, de ambos os lados fortes do século XVII, e atrás prédios modernistas, em cima no alto um promontório eclesiástico do início do romantismo (a Igreja de Santo Antônio da Barra); a de Boa Viagem, a vista externa da Capital Barroca (e onde ela fica mais barroca ainda); na Paciência, vê-se o antigo Hotel Meridien, os barcos saindo pra pescar, o morro da Federação, ônibus e gente passando na rua, e as mansões do Morro.
(ainda bem que meu Exú é forte, e eu nasci e me criei na Barra-Avenida: sabe lá o que é sofrer de amor e não poder ver um pôr-do-sol do Farol, pra ver se passa?!)
E mais: é especialmente gostoso ver o “bairro que não dorme” acordando…
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