Esse cinemazinho colonialista…
Volto a carga contra o senhor Fernando Meirelles. Alhures, têm dito que minhas criticas a ele em sua filmagem de uma obra de Saramago são pedantes, elitistas e invejosas. Reconheço que talvez sejam, mas isso não as impede de serem verdadeiros.
Vou tentar aqui então ser mais didático. Meu problema com Blindness (recuso-me a chamar um filme feito em inglês de Ensaio sobre a cegueira. Senão por mais nada, porque tenho o preceito religioso de referir-me a filmes pelos seus títulos originais, mesmo que o título seja em sueco) é que é uma leitura colonialista e colonizadora de uma obra e de um autor que é anti-colonialista e pós-colonial. O próprio Saramago já disse que seus pares são os escritores das ex-colônias portuguesas na África: Água-Lusa, Pepetela, Mia Couto.
Que sentido há em filmar uma obra lusófona, que tem relações umbilicais com esta língua, em inglês? – num tempo em que Ang Lee filma em Hollywood O Tigre E O Dragão em chinês mandarim! Se a questão era a vendabilidade e o financiamento, era possível subverter os pólos e colocar como condição para a indústria americana que o filme fosse feito em português com atores brasileiros (de resto já com algum trânsito em Los Angeles hoje em dia), ainda que dentro de uma estética americana, meio-Hollywood meio-Cinema Independente.
Eis a diferença de um cineasta rigoroso (Lee) para um feliz empregado da indústria, pião chão de fábrica lambe-botas do patrão (Meirelles). A diferença é histórica: Billy Wilder sempre filmou em Hollywood, mas ao modo que escolhia, e também Hitchcock. Fernando Meirelles é o equivalente, em filmes, à subserviência de um outro Meirelles ao capital bancário: Henrique Meirelles, presidente em exercício do Banco Central do Brasil. Ambos fazem mais do que seus patrões (o Bank Boston no caso deste último) lhes pede para destruirem qualquer laivo de soberania nacional.
No limite, Meirelles (o Fernando) poderia ter escolhido uma estética filmica portuguesa. O decano cineasta Manoel de Oliveira, aliás amigo de José Saramago de longa data, tem uma estética peculiar, e já com sintaxe saramaguiana mesmo filmando com atores franceses e americanos, como fez em O Convento, cujo enredo é sobre a ficticia origem portuguesa de William Shakespeare e a não tão ficticia origem portuguesa do maior pintor em telas que a humanidade já conheceu: Diego Velasquez Y Silva, cujo principal quadro tem título em portunhol – “Las Meninas” (quando, castelhano fosse, seria “Las Niñas”). O plot, de si, já é Saramago puro!
A própria escolha pela primeira obra do ciclo não-histórico de Saramago já é duvidosa. E justo a obra em que a visualidade e a lusitanidade têm menor importância. Porque não se escolheu o genial romance de época Memorial do Convento (que forneceria aliás belissimas tomadas em Mafra e nos Jerônimos), ou a ficção pseudo-histórica O Ano Da Morte De Ricardo Reis (idem para a paisagem de Lisboa e do Rio de Janeiro vistas em seus portos através do mar)?! O argumento da popularidade não me convece – salvo se for colocado como efeito previsível do international stile que Meirelles adotou.
Meirelles prefere fazer filmes bons, a custa de não serem nem dele nem brasileiros. Lembra-me Glauber Rocha de sinal trocado, que queria fazer filmes brasileiros e dele, mesmo que fossem ruins (e nunca o eram).
Tais críticas eu não faço sozinho. Fiquei feliz quando soube que Prof. André Setaro tem opinião similar a minha.
Claro, sempre há os que objetam com o recurso aos afetos do autor: “Mas Saramago gostou! até chorou na estréia…”. Ora, qual escritor lusófono, portador em si da glória da língua que deveria ter sido atribuida a outros 10 antes dele (de Camões a Pessoa e João Cabral, de Vieira a Guimarães Rosa e Machado de Assis), não choraria? Ainda mais que ele se reconhece e justamente se autoproclamou assim, no seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel em 1999. Usar deste argumento é esquecer que é possível mesmo aos gênios estarem tão afetivamente frágeis que podem sofrer um ataque pelo elogio e não se darem conta disso.