Dialética da mediocridade: paradoxos do pós-carlismo (ou: de província a Capital do Mundo, e de volta de novo)
A principal questão que se coloca, ao meu ver, neste segundo turno das eleições de Salvador, é a decisão (ou não) da cidade abraçar a condição de, e portar-se como a, terceira maior cidade do país, quinta do subcontinente, e a mais antiga das américas. Isto é: deixar de ser a “província que se tornou”, para voltar a ser (como tem sido este ano) a “capital cosmopolita que era” – ambas as expressões foram usadas por Márcio Meirelles, sabiamente, na discussão pública sobre o carnaval (a primeira de todos os tempos) que ocorreu ano passado no Teatro Vila Velha. Ele estava na platéia, como cidadão comum (embora fosse duplamente incomum: além de Secretário, é “dono” do Vila).
Como tenho dito, Salvador tem deixado pra trás a mediocridade provinciana em que se meteu nos intermináveis anos do carlo-axezismo. Esta mentalidade tacanha contaminava tudo: do gosto musical aos hábitos diários; da qualidade dos serviços (privados e públicos) prestados a capacidade de entender o mundo lá fora; da manutenção de uma classe política caduca até valores familiares não menos caducos e incabíveis numa cidade majoritariamente nagô de três milhões de habitantes.
Embora a sensação de “fim da mediocridade” compareça com clareza e força apenas neste ano, ela é um processo que remonta mais ou menos à eleição de João Henrique. Foi com JH que o carnaval começou a ser reformulado em detrimento dos blocos-de-corda e da invasão dos camarotes sobre a pista da avenida, e em favorecimento dos afoxés – embora timidamente. Foi com ele também que o desemprego galopante e estrutural começou a ceder, e os transportes públicos começaram a ser pensados fora da lógica onibus-dependente.
E, não se pode esquecer, JH foi a primeira grande derrota do carlismo, quando Salvador tinha medo de eleger um não-carlista – que poderia vir a sofrer retaliações do governo do estado, como ocorreu com a prefeita Lídice da Matta.
Por tudo isso, sempre defendi a gestão de JH mesmo nos piores momentos, e sou particularmente grato a ele. Ele deu os primeiros passos para fora da mediocridade, de volta ao cosmopolitismo em que vivemos hoje.
Acontece que ele é vítima de seus próprios atos. Sem JH, não haveria uma eleição de Wagner, por exemplo. Mas, uma vez isso acontecendo, os avanços de JH se mostram pífios – e, se meramente mantidos, acabam por ser retrocessos. O cenário político é outro, com um governo estadual engajado, eficaz em diversas áreas, democrático e comprometido; com um governo Lula devidamente engatado, depois da queda de Antonio Palocci (e João Henrique Carneiro foi dos grandes apoiadores de Lula nesta transição de um governo financista para um desenvolvimentista).
Neste novo quadro, João Henrique representa um conservadorismo medroso e mediocrizante. Votar nele é contentar-se com pouco, e negar a dialética da história. Imerso em suas próprias contradições, não admira que tenha se aproximado (embora apenas taticamente) do carlismo. E que esteja fazendo uma campanha digna de cidade de interior, com retaliações judiciais seguidas, brados de “fui traído”, e adesão a imagem de Robert Fouché tropical que é Geddel Vieira Lima. Como disse esta semana: de político independente, João Henrique transformou-se num poste!
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) aprovado por ele é mais um sintoma disso. Sem conter a expansão (aliás carlista) da cidade para o norte, para fora da península, ele não apenas não se desvencilha da infraestrutura econômica herdada da ditadura militar (a especulação fundiária urbana), como destrói os mínimos avanços que fez no transporte público. Mais ainda, nos mediocriza culturalmente, empurrando a capital mais e mais para fora de sua região original: o Recôncavo. Márcio Meirelles, o genial Secretário Estadual de Cultura, tem dito que é preciso que Salvador retome suas raizes reconvexas, só que isso não será feito jamais se for apenas no plano das idéias – é preciso reocupar, ou ocupar melhor, a Cidade Baixa, a Lapinha, a Liberdade, o Barbalho, os bairros de Salvador que de fato pertencem ao Recôncavo; ao invés de se aproximar mais e mais das jovens e industriais Lauro de Freitas e Camaçari, ao norte. É no recôncavo, yorubá, que está nossa origem cosmopolita.
Neste sentido, as propostas de Walter Pinheiro são articuladas de fato ao modo com que o Governo do Estado tem pensado – e com que eu penso. Inverter o vetor de expansão da cidade, trazê-la de volta para seu traço mais peculiar (a baía de Todos os Santos), como diz (numa de suas poucas passagens dignas de nota) o arquiteto (questionável) Fernando Peixoto.
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