Os Galos
Não sei porque, não tinha colocado aqui meu conto, ao modo dos Diálogos com Leucó de Cesare Pavese, já publicado por menção honrosa no Prêmio do Estado do Paraná em 2009. Extemporaneamente, aqui vai hoje, nesse interregno entre a Páscoa e o Corpus Christie.
* * *
Os Galos
para a Leucotéia de Pavese
Judas Iscariotes e Simão Pedro compartilham entre si duas peculiaridades do destino: ambos terão de trair o Salvador, para que a Salvação possa ocorrer; nenhum dos dois será conhecido por seus nomes originais. Conquanto um cometa o ato intencionalmente, e outro não – aquele antes da cruz, este logo depois – não é implausível supor que o tema foi tópico de palestra entre ambos.
Iscariotes
Pretendes mesmo traí-lo então?
Simão
Que dizes? Nunca intentei tal coisa. Estão aí o pão, e o peixe que eu mesmo pesquei, e o vinho que trouxe. Estive ao seu lado quando andou sobre as águas, e antes.
Iscariotes
Sobre as águas… e já lá o traía…
Simão
Duvidava, Judas; que não é trair. Antes, duvidar é uma forma de fidelidade.
Iscariotes
Também é um modo de ser fiel, Pedro, trair-se.
Simão
Não me chames assim; sabes que não gosto…
Iscariotes
Que não gostas…? É assim que ele te chama!
Simão
E só ele.
Iscariotes
Temes, de fato, ser a pedra.
Simão
Não, não temo. Apenas não creio que haja templo a ser erguido, em que eu seja pedra, cal, liga, ou mestre de obras.
Iscariotes
Vê? Duvidas de novo. Já é a segunda.
Simão
Já te disse: duvidar é minha forma de ser fiel. Por ele, em sua infinita certeza, o mundo estaria mudado mais rápido do que foi feito. Sou eu a rocha, a terra dura e seca, de onde brota pouco – mas o que brota fica, e não morre.
Iscariotes
Não te preocupes: todos nós teremos de traí-lo. Está nos seus planos – e de alguma forma no nosso.
Simão
Por que se demora tanto nas oliveiras? Já não vê que há azeite bastante? Que quer ele longe?, quando todos já estão chegando.
Iscariotes
Não todos, alguns ainda demorarão de vir. Dizia: não há vergonha em trair. Um filho precisa trair a mãe para que cresça, e não é a semente menos uma dura traição do fruto doce, e este da flor outrora bela. Também é a flor a prostituição da folha, devassada por insetos alheios, que nada querem dela senão o prazer de seu mel. E no entanto, emprenham-se – traem-se. Assim é a vida. E as folhas, os galhos, são a traição da raiz. O que há, Simão, é formas de fazê-lo: uns, por vontade própria, outros, involuntariamente. Que acha que se comemora hoje? a Travessia? Antes, a discórdia e a tempestade, e não o amor ou a devoção.
Simão
Intentas traí-lo então?
Iscariotes
Sim, e ele o sabe. Diria mesmo que me incitou, senão pediu com palavras, pediu com olhos, com gestos – como se eu pudesse negá-lo; como se negando, não viesse a fazê-lo involuntariamente. Não! Se o punhal a atravessar as costas tiver de usar minhas mãos, será com altivez. Não terá Brutus dado a César justamente sua derradeira prova de amor filial? Matou-o, mas garantiu-lhe um Império.
Simão
E como?
Iscariotes
Com um crime.
Simão
Mas que crimes cometeu? Nenhum, até agora. Não há do que o acusar.
Iscariotes
Cometerei eu, e não qualquer um. Um no qual eu seja meu próprio, e maior, tribuno. Fingir vender uma amizade para, na venda, consumar o que um amigo quer.
Simão
Vais delatá-lo?! Não deixarei!
Iscariotes
Pedro, nada podes fazer quanto a isso. Ouso dizer que mesmo invejará, e quererá ter sido tu a delata-lo. Mas és as rocha, o firme bastião, que não se curva nem faz brotar, mesmo no mais ameno clima. Já eu sou o junco, que se dobra para que o barco passe e acena na corrente do rio. Ao fim, tu também o trairás quando for inútil e tarde demais.
Simão
Se eu duvido, ainda posso crer. Porém tu, em nada crês.
Iscariotes
Não, não creio. Não em fatos. Não vislumbro um Reino de Justiça, neste ou noutro mundo. E no entanto creio que ele o deseja mais do que tudo, que viveu para isso. Se duvido das conseqüências, creio no seu anelo, mais real que as realidades que ele pudesse moldar; seguramente mais real que esta noite, que uma cruz, que este pão. E crer nisso não me deixa dúvidas.
Simão
Também sei do seu projeto, e o sustento no que posso. Talvez ninguém o ame tanto quanto eu. E sei de seus efeitos: vi cegos falarem, templos serem varridos, e refeições renderem.
Iscariotes
Entretanto, duvidas…
Simão
Duvido de que ele realmente saiba o que faz.
Iscariotes
Tampouco sabemos nós.
Simão
Ou de que realmente saiba o que deseja – além de não fazer idéia de como chegar onde deseja.
Iscariotes
Ao contrário, Pedro: ele o sabe. Também sua dúvida é parte do plano. Nada lhe escapa, justo quando parece escapar. O que quer é condenar todos a salvação; e não tanto salvar a todos de serem condenados.
Simão
Mas não sabe bem o que deseja…
Iscariotes
Isso tampouco sabemos nós. E é nisso que é muito humano. Nem por isso nos impedimos de desejarmos, e desejando sermos traídos.
Simão
Amo-o!
Iscariotes
Sem dúvida: e bem para si.
Simão
Que dizes, Judas?
Iscariotes
Que todos o querem para si, sempre vivo, e belo, e alegre. É assim que ele é melhor. Mas eu não o quero para mim – amo-o, e amá-lo é secundário ao meu amor: amo-o para que ele faça o que deve. Mesmo que o que deve nos abandone.
Simão
Silêncio… Parece que vem vindo, abatido. Será que chora?
Iscariotes
Chora.
Simão
Mas não o vês.
Iscariotes
Nem preciso, chora. Sei que sabe o que lhe aguarda. Escute, Pedro, antes que ele chegue…
Simão
Seja breve.
Iscariotes
Sinto não estar aqui para consolar-te quando perceberes que o traiu, traindo-te a ti mesmo contra e a um só tempo a favor de tua vontade própria. Que fique este beijo que agora dou em tua face como consolo futuro. O pão já está na mesa? E o sal? E o vinho?