Analfabetismo Urbanístico: o que é, como se faz (e a quem interessa)
Tendo em vista a inglória disputa entre a defesa do mal-dito “Parque Augusta” (numa região que já tem parques de sobra, e em que mais um só não é danoso porque ela tem densidade habitacional suficiente para absorver impactos negativos deste tipo) X proposta de construção de habitação cara e refratária a rua – enfim, tendo em vista esta briga em que a cidade real não está colocada em questão, briga esta em que quem está certo é só a briga, e olhe lá! – resolvi republicar aqui um texto meu antigo que escrevi para o Bahia na Rede anos atrás e que na época circulou bem por aí mas hoje tem sido difícil de encontrar.
A discussão sobre este lote na Augusta se torna mais demente ainda depois da revisão do Plano Diretor e do Código de Obras na gestão de Fernando Haddad, tornando São Paulo a única metrópole brasileira que limita o número de vagas de estacionamento de automóveis que um prédio pode oferecer, e faz tenter a zero as mesmas, além de explicitamente incentivar usos mistos entre comércio, produção de pequenas indústrias manufatureiras e habitação densa, sobretudo próximo a eixos de transporte de massa – e é precisamente o caso da Augusta.
O que me parece é que esta esquerda metida a verde perde de vista disputas mais reais, por exemplo na própria Augusta a desmotorização paulatina da via e a pedestranização de toda sua largura. Áreas boêmias similares em outras metrópoles brasileiras, como o Rio Vermelho em Salvador e a Lapa no Rio de Janeiro, passaram por isso, cada uma a seu modo, com grandíssimo sucesso (gerando muito mais democratização do que por exemplo Grampinho, prefeito neo-carlista de Salvador, gostaria…).
Anos atrás, escrevi este texto a convite do Bahia na Rede, por conta de alguns comentários meus a um post, com o qual em geral concordo, escrito por meu ex-chefe João Aslan acerca de segurança publica urbana. Nos comentários falava de “analfabetismo urbanístico”, o que parece ter ofendido alguns (embora o termo não tenha tal intensão).
O termo foi forjado por Cândido Malta Campos Filho e Ermínia Maricato, urbanistas ligados a Universidade de São Paulo, e aponta para o fato de que mesmo as elites brasileiras não têm o aparato lingüístico mínimo para ler e compreender (e portanto atuar) nas cidades. Por um motivo elementar: a conformação e os usos das cidades não são, aqui, temas, obrigatórios na educação escolar – diferente do que acontece por exemplo com nossos vizinhos argentinos.
Contudo, o analfabetismo urbanístico implica em outro problema: o analfabeto urbano é um ignorante em segunda potência – ele não sabe que não sabe (ou melhor: não sabe que há algo a saber). Há outras áreas da vida em que a ignorância de segundo grau aparece, contudo os sujeitos nesta condição se espantam, e a partir daí buscam saber, com seu desconhecimento. Nas questões urbanas, não: confrontados com seu não-sabe-que-não-sabe, os sujeitos reagem com um “sei sim!” (que é uma versão do “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe” – versão em bahianês para o que Goethe chamava de ignorância-em-ação). Esta presunção de saber, mesmo diante da mais clueless cluelessness pode ser explicado através de uma anedota de Freud. Dizia o pai da psicanálise que certas situações lhe evocavam uma entrevista de emprego de uma babá: “A senhora tem experiência com crianças?” – “Oh, sim, claro: eu própria já fui uma…!”.
O fato de viver em cidades (embora sem sequer dar-se conta de que também ela é uma gramática) leva o sujeito a dizer: “claro que entendo de cidades: eu mesmo vivo em uma!”. O que, convenhamos, é como alguém supor-se pneumologista porque, afinal, respira.
Por outro lado, é preciso ter em conta que o analfabetismo urbanístico não ocorre por inércia: boas cidades podem ser lidas “naturalmente”, sem um ensino diretivo anterior. Aliás, mais radicalmente nos lembra Ivan Ilich, boas cidades educam de um modo que escolas nunca serão capazes. Para que se instale o analfabetismo urbanístico (como patologia cogno-afetiva clínica e epidêmica) não basta não se ensinar geografia urbana nas escolas, é preciso ter cidades desorganizadas e cujo uso pedestre seja punitivo. Não se trata meramente de ser palimpsesto como Salvador (aliás, talvez Salvador seja menos analfabeta urbanística justo nos trechos em que é mais palimpséstica), mas da relação pragmática e moral dos sujeitos com as ruas em seus múltiplos usos – como ocorre no Rio de Janeiro, e que talvez tenha levado a recuperação desta cidade em relação a violência urbana em tão breve tempo: o carioca de todas as classes sociais, como bom flaneur, não desistiu de sua cidade no que ela tem de mais público e coletivo – as ruas e as calçadas.
O analfabetismo urbanístico é, assim, um ciclo vicioso: quanto menos gente entende cidades, pior elas são usadas; pior usadas, se deterioram; deteriorando, se usa menos; usando menos se deterioram, etc. No limite, se chega a idéia abstrusa de “bairro privado” com 50 itens de lazer, como Horto Bela Vista e LeParcs. Curioso é que seus compradores e moradores não se dão conta de que, por melhores que estes conjuntos habitacionais para ricos sejam, nenhum de seus itens de lazer será o Teatro Castro Alves ou o Museu de Arte Moderna da Bahia; e que, morando longe demais destes, só acessarão estes excelentes aparelhos de lazer mediante um sacrificante (para si e para todos os outros) uso abusivo do automóvel individual (diferente dos igualmente abastados moradores da Vitória que podem ir, e vão, a pé…).
Como se vê, o analfabetismo urbanístico só existe porque interessa a alguns. Interessa a especulação imobiliária, e à máfia que se intitula “empresas privadas de transporte público”. Interessou por muito tempo a um certo regime político, o carlismo, que criou a aberração que é ter uma capital projetada há 500 anos para ser capital, mas cujo governo estadual já não está no seu Centro – com todas as conseqüências de esvaziamento urbano e aumento de custos que sabemos, e de afastamento da relação direta da sociedade com o poder de estado em mão-dupla, que isso tem. Interessa aos que propagam que “o Pelourinho está abandonado”, o que na melhor das hipóteses é uma meia-verdade (diariamente, ele está tão cheio quanto qualquer Centro Histórico, e bem mais do que o Recife Antigo por exemplo), que acaba por causar aquilo de que se queixa: quanto mais se diz que um bairro está esvaziado, mais esvaziado ele tende a ficar.
O analfabetismo urbanístico é talvez uma das frentes da “Geografia que serve, antes de tudo, para fazer guerra”, no dizer de Yves Lacoste. E sabemos que a Geografia serve para fazer guerra menos pelo saber que ela dá aos donos do poder, e mais pelo saber que ela sonega aos alijados deste (o que no caso das cidades somos todos, da classe média alta aos favelados) ao fazer crer que a geografia (e o urbanismo) são “neutros” ou “inocentes”.
Por fim, uma última objeção. Costuma-se fazer a oposição, no Brasil, entre analfabetos urbanísticos de um lado, e especialistas (urbanistas, arquitetos, etc.) em outro. Esta oposição é apenas uma forma de manter as coisas ruins como estão. Eu, não sendo urbanista, mas tendo crescido sempre em meio a boa arquitetura (e a ensino de geografia urbana desde o primário, no Colégio Antônio Vieira, Garcia) sou urbanófilo – no sentido em que Jean-Luc Godard diz “cinéfilo”. Isto é: aquele que do amor devocional a uma arte, extrai um saber que acaba com sua capacidade ilusória, desvendando seus artifícios de linguagem por dentro.