Prêmio Nobel de Oralitura
para Reverendo Walter Ong, S. J.,
Paul Zumthor & Milman Parry
“shading of one more layer of skin,
keeping one step ahead of the persecuter within
(…)
the Book of Leviticus and Deuteronomy,
the laws of the jungle and the seas,
are all but his teatchers.
(…)
Nightsticks, water cannons, tear gas, padlocks
molotov cocktails and rocks behind every curtain”
Jokerman
A atribuição do Prêmio Nobel de Literatura, pela Academia Sueca, a Bob Dylan semana passada com razão gera sentimentos contraditórios em todos – quiçá até no próprio Dylan, que não se manifestou a respeito até agora nem mesmo para receber a premiação. Por um lado, parece tão óbvio que ofusca como isso não aconteceu antes; e, ao mesmo tempo, é uma enorme quebra de paradigma, incomum para um prêmio tão conservador que evita premiar Haruki Murakami por considerá-lo pop demais.
A justificativa oficial da comenda enfatiza o quanto a lírica de Dylan aproxima a tradição da canção radiofônica americana da tradição poética anglófona – digamos, até lançar raízes em Geofrey Chaucer. E em entrevista, a secretaria da Academia Sueca mostra ainda como a poesia declamatória musicada está nas origens, equiparando Dylan a Safo e Homero. Os detratores desta escolha dizem justamente que ele é “apenas um compositor”, mas a ambivalência de sua obra está nisso: letras extensíssimas e complexas, sem deixar de serem altamente cantáveis e populares (por vezes com uma melodia simples): se seus poemas (sim, poemas!) requerem a performance musicada, eles não são meramente orais senão uma oralidade posterior a grafação erudita – no que ele se aproxima ainda de Platão (cuja escrita emula uma fala que não só nunca existiu como não existiria) e de Sófocles (cuja fala emula elocubarções lógicas tão sofisticadas que só poderiam existir numa escrita que beirasse a matemática e a geometria).
Cabe lembrar que em outros registros musicais que não a canção já houve obras de valor literário em si: a tetralogia de Richard Wagner, O Anel dos Nibelungos, é como tal reconhecida por gente que vai de Goethe e Nietzsche a J. R. R. Tolkien; e uma parte significativa da obra de Bertold Brecht flutua, dependente da melodia de Kurt Weil, entre a ópera, o rádio e o teatro de revista.
Mais do que isso, a natureza nômade de Dylan ratifica seu caráter de bardo rapsodo tanto quanto seu engajamento político e capacidade de relato (Huricane é reportagem em forma de verso tanto quanto Maus, de Art Spiegelman, é reportagem em forma de quadrinhos – e foi não-ficção a categoria que lhe deu o Pulitzer), por vezes antevendo questões ainda não colocadas, o associa a outras tradições da poesia não-helênica, entre o cosmogônico e o denunciador: os Profetas Judaicos (sobretudo Isaias e Jeremias), os evangelhistas (Mateus pela mística, Lucas pelo historicismo, João pela estética), os Vedas e os Sutras.
Mas esta é, ainda, a banda conservadora de tal escolha do Nobel: do ponto de vista da semântica e do paradigma, Dylan é um poeta conservador, romântico até – seus pares no mundo anglófono são Alexander Pope e William Blake, no máximo Walt Whitman. O lado modernizante da premiação este ano está em admitir que existe literatura enquanto fruto de uma escrita cujo suporte não seja o papel grafado, e outro meio de recepção que não seja só o olho letrado.
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O Nobel de Literatura é um prêmio vago em seu gênero: prefere autores de romance mas já premiou memorialistas, oradores (Churchill), e comumente premia autores de teatro (forma literária também performática, em que a obra também depende da voz, em que a letra se aproxima da oralidade ou acha nela veículo – portanto nisso Dylan não é uma grande ruptura). Poetas puros são pouco premiados, e os que são tendem ao mofado. É um prêmio refratário a inovações formais, à direita ou à esquerda (Borges ou cummings nunca rebeceram a honraria) – num século em que os Estados Unidos estabeleceu o Prêmio Neustadt, no dizer que João Cabral de Melo Neto (um de seus laureados): “um prêmio de poesia que premia anti-poetas” (isto é, poetas que rejeitam a tradição clássica ou romântica e se usam de dispositivos hodiernos: ele próprio, cummings, Francis Ponge, Mariane Moore – esta jamais levaria um Nobel porque nunca estabeleceu obra em livro senão em folhas de jornal, tanto quanto o diácono John Donne, indisputavelmente o maior lírico do idioma inglês, fez poesia em cartas que circulavam de mão em mão).
Pode-se dizer ainda que o Nobel, com sua visão nefelibata de literatura (parece que agora rompida ao menos temporariamente), é uma premiação refratária ao seu próprio tempo, francamente passadista. Só isso explica o maior escritor de todos os tempos, patriarca de todo e qualquer romance possível, vivo ainda quando o Nobel começou a ser atribuido, nunca ter sido laureado – me refiro ao Conde Liev de Tolstoi. Evidentemente que a obra de Tolstoi não tem qualquer inovação formal ou de conteúdo em relação ao Realismo do século XIX, e que pessoalmente ele foi se tornando mais religioso e reacionário com a idade – mas até mesmo sua escolha por um ativismo cristão-primitivista o levou a se tornar um fenômeno midiático: sua morte na Estação de Astapovo foi o primeiro evento paparazzi de todos os tempos!
O mesmo explica a refratariedade em relação a Proust, que teria todos os atributos para levar um Nobel (romance tradicional, memorialista, e ensaista): o Em Busca do Tempo Perdido é a elevação de um fenômeno pop, o colunismo social, a condição de vitral gótico.
Das poucas vezes que o Nobel tentou quebrar esse paradigma e se contemporaneizar com questões inclusive da periferia do mundo, foi caricato: Kipling como primeiro representante da Índia, Gabriel Garcia Marques e Mario Vargas Llosa como representantes de uma América Latina que deu ao mundo Juan Rulfo e Júlio Cortázar (pra deixar de fora Borges, que já citamos); uma esquerda militante, se escolhe Neruda, e pra dar alguma vez a última flor do Lácio, José Saramago – que merecia por si só, mas como bem diz no seu discurso de recebimento: “está recebendo em nome de Machado de Assis, Eça de Queiroz, João Guimarães Rosa, Miguel Torga e João Cabral de Melo Neto”. Sem falar claro de Herman Hesse: medíocre e ao fim e ao cabo nazista (ponha-se em parte na conta do empenho do já então laureado, e este sim gigantesco e um herói da ética, para que isso acontecesse: Thomas da Silva Bruhns Mann).
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Interessa menos no entanto colocar em causa o que levou a Academia Sueca a eleger Bob Dylan, e mais tirar disso efeitos. Os que torceram o nariz sobretudo alegam que uma das funções do Nobel é tornar conhecido do grande público, e mais lido, autores de outra forma obscuros – não vêem com isso que premiar alguém cuja obra está originalmente em outro registro fora do formato literário canônico pode, justamente, atrair novos leitores, e a obra de Bob Dylan sempre foi uma báscula entre a cantiga popular agrária e a literatura mais urbana e erudita.
Este destravamento da Academia Sueca pode ter consequências miméticas. Nada impede que Chico Buarque de Holanda, em quem todas as correntes do modernismo desaguaram (seu pai Sergio, Oscar Niemeyer, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinicius de Moraes, e outros tantos) merecidamente receba um Prêmio Camões (embora não se possa reduzir Dylan a um Chico americano: ele é Chico, Raul Seixas, Sá & Guarabira e Geraldo Vandré a um só tempo) ou ingresse na Academia Brasileira de Letras (que, lembremos, já abriu as portas a Paulo Coelho…).
Mesmo dentro do próprio Nobel passam a figurar na fila doravante autores de obras literárias em prosa dependentes da ilustração. Não creio que algo radical como o recente (e excelente!) Here, em que a narrativa se dá no espaço e não no tempo e na verdade é a palavra escrita que auxilia a imagem, e não o contrário; algo como a obra de DeMateis, que já de si em Moonshadow porta diversas referências explícitas à literatura erudita nas epígrafes de cada capítulo desta novela, como Becket e Lewis Carroll, mas cujo enredo bebe no romanceiro beat e na ficção científica pulp – e seguramente Neil Gaiman, alguém que o próprio Harold Bloom já chamou de gênio e que, embora figura crucial nos quadrinhos é também um autor em prosa pura tradicional plenamente auto-suficiente.
Ou ainda, que o Nobel e outros prêmios se abram ao que Ursula LeGuin chama de “realistas de outras realidades”: a ficção científica e a fantasia – jamais premiadas neste ou em outros prêmios convencionais, senão os setoriais, a não ser na figura de Doris Lessing (e neste caso, quase apesar de ela fazer também ficção espacial – o Nobel lhe foi dado claramente por sua obra realista anterior).
Claro que se pode apontar sempre um legado negativo desta virada: uma ratificação dos audiolivros como substitutos legitimos da leitura silenciosa ou em voz alta presencial (doméstica ou teatral) – embora isso seja reduzir Bob Dylan a um autor de discos, apenas, e não de performatividades (inclusive o ar blasé com o qual nada disse ainda a respeito de ter recebido um Nobel), e seja ínfimo diante do salto qualitativo que este evento representa desde já e doravante.