Despertar antes do Sonho
Com Carol, Todd Haynes achou finalmente voz própria – e cometeu uma obra-prima, um dos melhores filmes já feitos, que senta a mesa por um lado com Morte em Veneza, de Luchino Visconti, e por outro com o díptico Ice Storm / Brokeback Mountain, de Ang Lee, acrescentando algo de novo e outro.
No seu penúltimo filme, Longe do Paraíso, Haynes já dominava com perfeição a gramática fílmica, só que ainda emulando um de seus mestres: Douglas Sirk. Aliás, desde sempre Haynes desenvolve sua linguagem por decalque: em Veneno, seu primeiro longa, copiava Jean Genet, Jean Cocteau, Pasolini e Fassbinder (e, portanto, François Ozon).
Outrossim, o filme de época sempre foi seu campo tanto quanto o filme de desvio sexual: lá onde ele não existe, Haynes o inocula – ao fazer por exemplo Bob Dylan ser interpretado por uma mulher, Kate Blanchet (com quem aliás ele mantem uma relação de cumplicidade autoral similar a de George Cuckor com Katherine Hepburn, a quem ela também já interpretou). Velvet Goldmine é exemplar neste sentido, particularmente nestes dias posteriores a morte de David Bowie.
Além do decalcamento de diretores e autores anteriores, seus filmes tendiam (embora fossem se esvaziando paulatinamente disso) a um discurso ideológico militante: a libertação de se estar no lugar de dejeto (bicha, presidiário, etc), o rock como instância bissexual por excelência (para não dizer andrógina e transgênero), etc. Desta vez, ao contrário, sua visada é sobretudo analítica e menos panfletária (o que já vinha surgindo desde Far From Heaven).
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Evidentemente em Carol a influência de Sirk é nítida, mas foi reduzida a isto: uma influência, não mais um caminho a trilhar. O que lhe concede espaço para que seja influenciado por outras artes (“São as outras artes que me ensinaram a escrever”, diz Robert Bresson citando Stendhal ao encerrar sua última entrevista): Edward Hopper, a arquitetura Art-Decor anterior ou paralela a Praire School e ao Arts & Crafts Movement, e mesmo Johanes Vermeer e Diego Velasquez são mais importantes do que qualquer outro cineasta para a formação deste clássico.
A fotografia embassada, a luz lateral, os personagens de corpo inteiro sempre atuando de costas para a câmera (e quando os rostos são mostrados, são sempre em close-up), ou ocultos por um móvel ou parede, ou dialogando desde cômodos diferentes, e o uso de superfícies reflexivas de modo a conjugar duas cenas simultâneas – para não dizer as cenas que ocorrem mutuamente periféricas umas as outras, como na abertura e no fechamento da trama, que são a única e mesma cena, filmada ao direito e ao avesso.
Mas também a importância dos hábitos cotidianos domésticos, e a opção por cenários fechados íntimos (casas, apartamentos, automóveis, quartos de hotel) – Carol Aird cozinhando não é menos do que a Moça Servindo Leite; o uso da cabine telefônica não difere da Grávida Recebendo Carta.
E ainda as insígnias exteriores, maneiristas: broches, chapéus, penteados, tipos de nós de gravata; as paredes se nuas ou se repletas de fotos, os utensílios.
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O tom analítico, e não mais denunciador, nesta fita reside numa escolha epocal: somos o tempo inteiro informados de que ainda não estamos na vigência do American Dream – o namorado de Therese vai pegá-la para passear, em uma nova-york ainda com poquíssimos carros inclusive pequenos, de bicicleta; apenas uma TV aparece em todo o filme, e apenas numa casa rica, com Dwight Eisenhower discursando como Presidente Eleito, discurso no qual marca explicitamente que se está no exato meio do século; a dificuldade de empregabilidade e os baixos salários, e vale lembrar que só no final a personagem-título, para sua própria surpresa, se vê obrigada a trabalhar fora de casa.
É um Estados Unidos da América pouco antes da Guerra da Coréia – bem antes portanto da crise de valores que será deflagrada pela Guerra do Vietnã, mais de uma década depois.
É importante localizar a trama aí pois os personagens vagueiam num limbo de valores e práticas: o que restava de uma sociedade de gênero (ainda que reduzida ao patriarcado e do outro lado ao trabalho sombrio) já está se esvaindo (a aristocracia da Nova Inglaterra do qual Harge e Carol fazem parte), mas uma classe média robusta, educada, urbana e ao seu modo revoltada (que será Therese em poucos anos) ainda não surgiu.
A narrativa acontece portanto comprimida entre o que foi o mundo de Henry James e sobretudo de Edith Wharton e o mundo que viria a ser de Elizabeth Bishop, Silvya Plath e Susan Sontag (antecipado neste limbo pela poetisa Marianne Moore – não por acaso todas mulheres que rejeitaram o casamento e são lésbicas ou ao menos não-heterossexuais, para não dizer anti-heterossexuais) – e Jane Jacobs (uma Nova York ainda não vitimada pelo rodoviarismo de Robert Moses). Ainda se sente a última ressaca da Grande Depressão, mas já aparece o raiar do sol do American Way of Life – e.e.cummings, ainda vivo, não canta mais o mundo que deixou de ser cabotino e tem a riqueza da falência mambembe, mas Robert Frost não surgiu ainda para gritar o perigo da segurança extrema e meditar sobre a emergência.
O romance entre Therese e Carol seria resolvível, ainda que com dificuldade, numa lógica vitoriana de antes, ou na modernidade de logo depois. Aí onde está, é preciso esperar.
Sobretudo, a culpa não é “dos homens”: Harge é menos ressentido do que cego, não dominando as regras do mundo que vai surgir, e dominando as regras do mundo que já morreu e que não valem mais.
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O trunfo de Hopper em se querer herdeiro de Vermeer está menos na técnica ou temática, e mais na capitação do que Reverendo Ivan Illich chamava de “a triste perda do gênero”.
Saindo tardiamente de uma Idade Média que ela não bem entrou, e entrando também tarde no comércio internacional das Grandes Navegações (mais como entreposto, banco e beneficiador de comodities do que possuidor de colônias), Flandres & Holanda do século XVII ao mesmo tempo mantém e diluem a divisão vernácula do trabalho doméstico – como no quadro da Tecelã, a atividade doméstico é feminina mas ainda não sombria, econômica mas ainda não sexizada. O gênero ainda resiste através da múltipla função do lar que é mais do que mera residência.
Hopper, séculos depois, retrata o vazio de quando o gênero já desapareceu, e há apenas a solidão sexual: homens e mulheres são sujeitos iguais, e portanto em disputa; sua linguagem, agora pretensamente neutra, é ainda mais ininteligível. E já não há atividades domésticas a fazer, senão a desolação do tédio, já que toda a vida cotidiana está, ou se torna, automatizada: o tempo é finalmente livre, mas esvaziado de desejo.
Menos do que a opressão feminina, ou homossexual, o que Carol mostra é o fim deste hiato de 400 anos, onde o sexismo está pleno mas ainda não foi notado e criticado. Não bem um pesadelo, é uma época do sono sem sonho – que, no final dos anos 1960, começará a fazer água, a ser questionado e virado do avesso.
Therese e Carol estão tentando despertar antes que o Sonho de um mundo de anódina igualdade e liberdade comprável as engolfe (é nítido que o que Carol deseja em Therese é evitar que ela cometa os erros – casamento, por exemplo – dos quais ela está tentando se livrar). Um amor que já não tem tempo na ordem de gênero, mas ainda não tem tempo numa ordem que questione a ordenação sexual industrial.
E é isto que tal filme traz de novo: se Rooney Mara é o equivalente lésbico de Bjorn Andersen como o Tadzio da fábula de Thomas Mann (e é de se notar que a canção final é uma sonata de Chopin, a que se apôs uma letra, cujo tema melódico é o mesmo do Adagietto da 5ª Sinfonia de Gustav Mahler), não se trata mais de uma impossibilidade, um pecado, uma doença ou um crime; por outro lado, a importância de Carol não está no impacto que pode ter no público não-urbano, como foi o díptico de Ang Lee – antes, ele surge num mundo em que a visibilidade feminina e homossexual já está consumada, restando compreender como, mais do que despertar antes do sonho, fizemos por gerações tal realidade vir a ser.
E está também no deslocamento temporal (a cidade de Nova York é propícia para um amor sáfico, mas não ainda naquele momento, ou não mais), lá onde Tempestade de Gelo e Brokeback Mountain já acharam seu tempo, mas não seu espaço: nem o subúrbio de Nova Jersey (agora medioclassista, e fruto do endividamento do Sonho Americano, onde em Todd Haynes ele é aristocrático) para liberalidade sexual nem o meio-oeste contraparte deste subúrbio (ainda quase feudal, pré-proletário) como lugar para a homossexualidade.