a Eternidade pretérita
O recente longa metragem pernambucano História da Eternidade tem causado certo frisson e interesse, além de elogios rasgados, em certa galera modernete, deleuziana (eu sou anti-!), meio queer, performática enfim. Não posso encontrar justificativa para tal, uma vez que a excelência da fita está no seu conservadorismo radical (tanto fabular quanto nas opções de filmagem), salvo a superficialidade interpretativa intrínseca dessa galera.
O conservadorismo aparece já na técnica desde a abertura: a primeira dezena de minutos não inclui qualquer diálogo, não há foco da câmera em personagens específicos, o comportamento destes não é psicologizado, a fotografia não tem filtros. Trata-se de um cinema objetal, que antes de ter atores tem modelos funcionando como objeto de cena: mais do que bressoniano, toda a gramática de Camilo Cavalcante se insere no, e não meramente emula o, realismo poético da Pathé pré-guerra.
Tal estética aparece ainda na escolha por cenários reais, o uso de não-atores (contudo a interpretação sempre maiúscula de Marcélia Cartaxo – talvez nossa maior atriz puramente de cinema – e de meu ex-colega de Antonio Vieira, Leonardo França, chamem atenção), a quase ausência de narrativa com a proeminência da captação das ações, os nichos narrativos diversos que se entrecruzam se modificando: estas coisas me fazem pensar num Marcel Carné agreste, um Boulevard du Crime / Les Enfant do Paradis de aposentados rurais.
Mesmo as cenas que hipnotizam (com razão) estes adolescentes tardios pós-contemporâneos de que falei no início, que se poderiam encaixar isoladamente no conceito (deus nos defenda!) de video-arte, são reacionárias no melhor sentido do termo. Por exemplo, o já clássico plano-sequência em que Irandhir Santos dubla o Secos & Molhados (nota: uma das melhores bandas de rock de todos os tempos – se você não concorda, você não entendeu ainda o que é rock!): há nela muito do anti-cinema (teatro filmado) de Sacha Guitry (além, é claro, de ecos operísticos de um Jacques Prevert ou Marcel Pagnol nos roteiros com Carné – o personagem de Irandhir Santos é meio uma Garrance drag-queen mas também um Poi-le-carrot que cresceu no sertão).
Isto posto, a estória contada é mais conservadora ainda, se inserindo num cinema devocional que vai do catolicismo penitente de Carl Theodor Dreyer ao pan-espiritualismo do hodierno Ang Lee (não chega a surpreender que, com deleuzices, uma galera hoje elogie Lars von Trier como libertário: herdeiro declarado de Dreyer e Bresson, com a diferença de que seu conservadorismo tem desprezo pela condição humana e é de um niilismo militante, beirando o facismo – ao avesso dos outros autores que citei ou citarei aqui), diria que seu roteiro é uma ficção de tese. Tal tese se manifesta no fato de que, dos três núcleos narrativos do longa, o único com final feliz é o que não se contamina pelo mundo industrial, urbano e trans-humano externo a cidadezinha sertaneja. Aliás, toda vez que a bolha estática no tempo (a eternidade é o presente ininterrupto – a definição é de São Tomás de Aquino, e vale para o Paraíso como para o Inferno: só o Purgatório é temporal) é invadida pelo êxtase do futuro (o artista performático do personagem de Irandhir Santos, o neto que regressa da Paulicéia Desvairada tatuado, com cabelo descolorido, e com claro “uso recreativo de entorpecentes“) a barreira contra o incesto se esgarça: a avó passa a ter fantasias sexuais com o neto ao tomar conhecimento de uma revista pornográfica francamente bissexual que porta na mala; a sobrinha adolescente se engaja num estupro reverso do tio, insinuadamente homossexual, após uma crise epiléptica (nem de longe a primeira…) deste. Só ao cego sanfoneiro e sua paciente conquista de uma viúva ressequida é garantida a felicidade, modesta, convivial.
Não posso deixar de ver aí também um certo eco do conceito de vernáculo da esquerda jesuítica do pós-guerra: Walter Ong, Michel de Certeau, Teilhard de Chardin, e sobretudo Ivan Illich – a idéia de que é a modernidade técnica, mais do que o capitalismo ele mesmo, que produz a pobreza industrializada por aleijar os meios de subsistência tradicionais e inserir ali desejos que não se encontrariam na capacidade autônoma de produção.
Há ainda um trunfo narrativo (apesar de alguns excessos de explicitude que Robert Bresson condernaria, e que se nota que o diretor tentou em vão evitar): o presente continuo que forma a eternidade do título não é atual, mas passado. Um presente que foi, que era, que se continua a ser é como fóssil: tudo aponta para a estagnação da década perdida de 1980 – a televisão na praça, as lâmpadas incandescentes, o orelhão de posto telefônico usado comunitariamente (e a ausência de telefonia celular mesmo para o neto que retorna de São Paulo), o uso de LPs (mas não de CDs) nas performances. A eternidade é a década em que o socialismo como gerência de desejos pelo estado naufragou, mas em que a industrialização capitalista também mordeu o próprio rabado; que as ditaduras acabaram mas que Tancredo não tomou posse – este decênio sarneyzista que não cessa de não se concluir porque não cessa de não começar.