Por uma Outra heterossexualidade
Para Rômulo & nossos outros amores
Desde os tiozões conservadores e meio família, aos pastores neopentecostais e a uma certa playboyzada heteronormativa que “pega geral”, os homens heterossexuais sentem-se ameaçados pelas novas liberdades sexuais, mormente das mulheres e e dos homens que desejam outros homens. Tal fobia não é sem razão – mas dela poder-se-ia tirar melhor proveito.
A razão está no fato de que supor, ou impor, ou propor, a igualdade entre os sexos é não só factualmente limitada (as distinções anatômicas e fisiológicas são, gostem ou não, irredutíveis) como desvantajosa (a divisão de gêneros sempre foi uma forma de articular uma complementariedade a partir de uma desigualdade) e inviabilizante do erotismo entre homens e mulheres: se se quer uma relação erótica com igualdade, supõe-se que o sujeito busque uma relação homossexual (tradicionalmente sempre foi assim – antes e fora do advento da ordem burguesa, é claro). A tentativa de estabelecer uma equidade entre homens e mulheres, e entre as formas de relação e afetos heterossexuais e homossexuais, introduz ainda mais disparidades de poder – embora a graça de qualquer relação erótica esteja no manejo das diferenças: de idade, geração, classe social, origem geográfica, etc.
Mas a razão reside também na perda de sentido vetorial do Feminismo – se é que ele algum dia teve um. Pensando com Ivan Illich, o feminismo foi, mais do que uma reação, uma reatividade pouco analítica ao surgimento do trabalho sombrio: anteriormente a existência do trabalho assalariado, o trabalho do homem e da mulher em torno de um lar era complementar e ambos contribuiam com a renda e a subsistência daquela instância; uma vez que o trabalho masculino se torna alienado, voltado apenas para a produção e a recepção de um salário, o trabalho doméstico, que se torna então totalmente feminino, passa a ser de mero consumo – o fato de ele não ser remunerado é um efeito colateral mas não o real problema. O real problema está no fato de que ambos os trabalhos se tornam alienados, sem sentido.
Nesta ordenação da divisão do trabalho familiar anterior ao capitalismo não havia poderes iguais entre homens e mulheres, mas sim correlatos; o gênero era uma consequência social da anatomia, mas não linear, e sim construído vernacularmente. O destino do casal não era compulsoriamente o matrimônio, nem o da mulher o binômio mãe e dona-de-casa (como o do homem não era o de provedor): nem que fosse pela existência de conventos e côrtes, as mulheres poderiam se tornar de freiras a alcoviteiras – o lugar de esposa era o mais comum mas não o único e seguramente não tinha por função principal o binômio reprodução & consumo, senão o compartilhamento da vida.
Seja lá como for, o Feminismo foi bem sucedido na questão de equidade laboral e civil, ainda que no sentido contrário ao desejável: transformou as mulheres em tão assalariadas quanto os homens, e profissionalizou o trabalho sombrio transformando o vernáculo em gramática industrial de serviços. Agora, dobrou o cabo da boa esperança, seja pela opressão aos homens (quando deveria ser uma re-divisão de direitos) que o Masculinismo tão bem denuncia, seja porque as próprias mulheres se colocaram numa posição muito mal-parada em relação a seus próprios desejos sexuais.
O Feminismo, no tocante a relação erótica heterossexual, gerou um double-bind: ou bem a interação erótica entre homens e mulheres é potencialmente agressiva, e deve ser evitada; ou bem ela é aceitável se os homens forem menos ativos, mas as mulheres se recusam a sair de sua posição de passividade e aceitação. Cara eu ganho, coroa você perde – ou preso por ter e por não ter cão. Se anteriormente ao advento do Feminismo as mulheres estavam confinada a posição ou de dona-de-casa ou de puta, agora já não têm estas mas não ganharam outros lugares a estar.
Caberia talvez uma mudança de semântica: os problemas não são (talvez nunca tenham sido) das mulheres, ou da feminilidade, mas da relação entre os sexos – e em lugar do Feminismo deveria advir um Movimento Heterossexual, similar por antropofagia (e por isso mesmo oposto por superação) ao que se chamou de Movimento Homossexual. Enquanto a Viadagem Institucional se autorizou, e mesmo se obrigou, a cagar regra nas últimas décadas (mesmo que pela via da Transexualização Universal, dos Queer, que nada mais é do que uma redução ainda mais drástica das capacidades vernáculas dos sujeitos engendrarem seus gêneros, e um aumento da alienação industrial dos sexos), um Movimento Heterossexual consistiria em colocar problemas vernáculos: o que um homem e uma mulher, a partir de sua desigualdade articulada, podem desejar entre si e um do outro? que tipos de prazeres podem descobrir? que novos saberes podem inventar?
Problemas que poderiam ter sido, e um dia foram mas deixaram de ser, da homossexualidade quando ela não era um tipo socioclínico mas uma prática difusa no advento da masculinidade. Apesar de junguiano, Gustavo Barcellos aponta bem algo transversal a este problema: a redução, clínica inclusive, dos mitologemas da homossexualidade a variações do Arquétipo do Andrógeno – quando nada seria mais falso, e seria importante buscar os mitos realmente homossexuais, que tratam da masculinidade pura porém desigual: Zeus e Ganimédes, Adriano e Antinoo, Eteócles e Polinices, Castor e Polux, Davi e Jônatas, Gilgamesh e Eikindu, etc., muito mais ligados a idéia de Substituto Paterno & Filho ou incesto entre irmãos. Diz Barcellos, e eu concordo, que mesmo antes do advento da Ordem Burguesa a mitologia homossexual era infrequente – mas eu contrariaria em um aspecto: era mais variada em sua infrequência.
A mitologia da heterossexualidade se revezava entre o sexo casual e forçado com moças em série a quem se emprenha (Zeus, Apollo, e suas ninfas e amantes mortais – a que poderíamos chamar Arquétipo do Estupro), ou o matrimônio como fardo (Zeus e Juno, Saturno e Reia, etc) – em nenhum dos casos há a riqueza de negociação e engendramento de desejos no par mais frágil, tema crucial de toda a erastia helênica: não caberia a mulher desejar, nem ao homem fazê-la desejar ou fazer-se desejado por ela, quando isso era justamente o cerne da relação com o eromeno homem.
Mesmo esta mitologia heterossexual sofreu uma redução abrupta com a reificação de Tristão & Isolda (o amor que acaba no momento mesmo em que se consuma, talvez o mitologema de base do binômio trabalho empregado X trabalho sombrio) no Romantismo – não sem antes, com Shakespeare (e o diácono John Donne, vale lembrar), a heterossexualidade ter ganhado uma proliferação e uma pluralidade (e uma equidade interna) benignas e nunca antes vista! E não sem minimizar o fato de que, diante da riqueza (embora numericamente escaça) dos mitologemas da homossexualidade (e da masculinidade), os GLBTTWZ-KY preferiram a rasteirice das divas, drags e travecas – corroborando de modo caricato com a reificação do mito do andrógino.
Seja lá como for, é hora de uma Heterossexualidade que não busque igualdade, nem a repetição do mesmo – mas que seja capaz de recriar seus mitos de desigualdade, de um modo carnavalescamente shakespeareano (lá onde as mulheres que querem ocupar o lugar dos homens se dão mal – McBeth, Mercador de Veneza – mas também elas têm uma profusão de poderes e liberdades correlatas – Medida por Medida, Muito Barulho por Nada, a Titânia de Sonho de Uma Noite de Verão ou a Miranda, filha de Próspero, que descobre e cria o admirável mundo novo dessas gentes assim…)
Para isso, contudo, será preciso que as mulheres estejam aptas a admitir nos homens também uma maior variabilidade sexual – não ver as práticas homossexuais deles (mais frequentes do que declaram) nem como impecilho nem como signo de exclusão – antes admitir que todas as escolhas sexuadas são contigentes e passíveis de mudanças e ocilações. Uma tal Heterossexualidade renovada precisaria usar a Homossexualidade como tática – nada muito diferente do que se fez na Roma do século II, por exemplo – com as moças vendo como uma vantagem os rapazes que admitem ter tido experiências eróticas com outros rapazes, sem no entanto tomar isso como fetiche. Homens e mulheres estariam então juntos, em pares, não buscando ajudar um ao outro a “resolverem seus problemas”, mas antes a vivê-los de modo, vá lá!, nômade, radical, poético no sentido seminal do termo.