Alterbiografia
a heterobiografia de si (ou a autobiografia do Outro)
No seu pequeno opúsculo O Africano, ora publicado na belíssima e eficiente Coleção Portátil da Cosac & Naif, Jean-Marie Gustave Le Clézio se propõe a uma tarefa peculiar: descobrir, ao passo em que inventa, a história de seu próprio pai nos anos anteriores a tê-lo conhecido, embora posteriores a seu próprio nascimento. Seu pai, branco, anglo-francês, descendente de colonos das Ilhas Maurício, que renegou a possibilidade de cursar residência médica na Grã-Bretanha e ainda recém-formado se embrenhou pelo desmundo selvático das Guianas e da África Central, para nunca mais voltar.
Afligem Le Clézio duas questões: como seu pai tornou-se africano e como tornou-se amargo – estas duas questões se opõem convexamente, sem chegar a serem mutuamente excludentes. O evidente amor dele pela África, sua sincera identificação e introjeção de hábitos bantos, iorubás, ngongos e fons mesmo no cotidiano de sua aposentadoria no sul da França parecem contradizer a amargura que a mesma África lhe infringiu – ou pareceria, não fosse um fato temporal preciso: seu pai vive três momentos diferentes da África – o do entre guerras, o da Segunda Guerra Mundial, e o do pós-guerra descolonizador.
São três tempos distintos: no primeiro, a alegria um tanto ingênua, mas sem dúvida canibal, de se imiscuir neste mundo arcaico e novo, acompanhado de sua jovem mulher – época de amor, quase de luxúria, telúrica, no belíssimo e opulento planalto oeste dos Camarões, em particular nas vilas de Banso e Bamenda; o início da Guerra afastando-o da esposa, agora grávida do próprio Jean-Marie, e isolando-o nas entranhas do continente, lugar onde a guerra praticamente não existia e a vida nômade e tribal seguia adiante ignorando fronteiras coloniais e a proximidade do apocalipse; a descolonização, momento em que seus filhos, criados com os avós (inclusive no sentido pejorativo do termo), vão morar com ele numa região da África que ele próprio não aprecia – Ogoja.
Decerto que o pai de Jean-Marie Le Clézio é um personagem interessantíssimo, que parece pulado para fora das páginas de um Joseph Conrad ou de um Rudyard Kipling. Por isso mesmo, não está aí o trunfo desta pequena semi-novela. A mestria de Le Clézio aparece metalinguisticamente, ao criar, ou consolidar, um novo gênero literário que eu chamaria de “autobiografia do Outro” ou da “heterobiografia de si”.
É apenas reconstruindo a africanização de seu pai, seu percurso dialético de colono para colonizador para colonizado para descolonizado para recolonizado e pós-colonizado, que Le Clézio pode entender o que há nele mesmo de africano, de descolonizado, de neo-colonial, de pós-colonial. A história do outro é também a minha história até no que ela me exclui – e tal história, invenção e descoberta, é sobretudo um fato corporal, anatômico. É na África que o narrador descobre que tem um corpo – que se é sobretudo, e antes de tudo mais, um corpo.
O outro aí não apenas nem principalmente o pai, senão o Outro, maiúsculo, do continente africano – o retorno do recalcado do eurocentrismo: a terra maciça e ininterrupta que, se comporta fomes geracionais fruto de guerras tribais fratricidas e o maior deserto do mundo, abarca também amplas paragens férteis e prósperas onde trocas econômicas multi-étnicas se dão a milênios de modo sofisticado e complexo sem que o pequeno velho continente mais ao norte se dê conta ou interfira. Dentro da África há outras Áfricas, e lá ainda outras Áfricas: a das pseudo-metrópoles coloniais litorâneas, das megalópoles petrolíferas faveladas, mas também das boiadas com enormes chifres de meia-lua que parecem sustentar o céu, e dos arranha-céus de maquete feito por milhares de cupins completamente cegos, cidadelas de barro cru.
Se a alterbiografia de Le Clézio fosse uma denúncia de como as Áfricas reais são dizimadas pelo poder das metrópoles, ou por outra de como resistem, seria um clichê; ele contudo vai além: trata-se de propor um devir-África ainda que imaginário e através do corpo e da história de um Outro, antropofagizar o antropófago, enquanto colonizador se permitir ser colonizado por aquele que pretendemos colonizar – escrever-se com a mão dos outros enquanto escrevemos os outros com nossa própria mão.