Antoine Doinel às cegas (ou Lacombe Lucien no escuro)
Com muito frisson nas viadagens institucionais, adquiridas & congênitas, estreou faz duas semanas o primeiro longa metragem de Daniel Ribeiro, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho; há nisso, como soe de sempre ser, dois enganos: o filme não é irreprochável, e por outro lado não pode nem consegue (ainda bem!) resvalar para a cacofonia da estética-gay.
É verdade que toda a (curta mas esmerada e promissora) obra de Daniel Ribeiro até agora tem na centralidade de sua fábula relações não só homoeróticas como homoafetivas, e perfeitamente dentro dos padrões esperados e aceitáveis – digo: são, sob todos os aspectos, relações compreensivas na ordem burguesa como “gays” (isto é: incapazes de colocar em xeque o desejo heterossexual e a identidade masculina de parte da plateia – é uma homossexualidade palatável e aceitável porque nem histriônica nem ameaçadora); contudo, se este traço semântico é fundamental na constelação de significantes que ele mobiliza, não é central em sua sintaxe, nem é mesmo a moral da fábula. Quero dizer: a homossexualidade (e mais ainda: as relações homoafetivas dos protagonistas) é meio, e não fim, para falar de outra coisa, outro tema, este sim crucial.
Os temas, e a sintaxe, de Daniel Ribeiro em tudo parecem, até agora, com a face mais popular e linear da Nouvelle Vague: as descobertas juvenis e a transição para a adultez (e afinal, mesmo um cineasta mais áspero da Vague como Godard nos lembra: a verdade é que não existem adultos!); e articulando fábula com a estória (o modus narrandi, a narração pela câmera), está a idéia, também nouvelle-vaguista (e que remonta a Jean Vigo), de que o cinema é capaz de salvar a infância perdida, a adolescência que se esvai com a dureza do adultecer.
Não é apenas na concepção temática e fílmica que Ribeiro se aproxima da Vague, mas também na sua prosódia: a cena inicial de seu primeiro curta metragem, Café Com Leite, contem um diálogo que poderia estar nos filmes de amor de Louis Malle (Os Amantes, Trinta Anos Essa Noite, Ascensor para o Cadafalso, mesmo Sopro no Coração) tão bem marca os desencontros linguageiros do amor: “- Quer morar comigo? – Uhm…?! – Perguntei se você quer morar comigo… – Eu quero dormir!”. Aliás, todo esse curta tem um tema que se assemelha ao Atalante: as dificuldades de um jovem casal quando a relação amorosa passa, mais ou menos bruscamente, do idílio para a realidade prosaica do cotidiano.
Não é a primeira vez que um jovem diretor contemporâneo (e homossexual) se apropria do arsenal da Nouvelle Vague, subvertendo-o para fora de sua heterossexualidade original – a começar, décadas atrás, por André Techiné, sem dúvida uma referência de Ribeiro; mais recentemente no Canadá Xavier Dolan tem feito percurso similar, só que por vezes obtendo resultados ao mesmo tempo histéricos e deserotizados. A diferença de Daniel Ribeiro está não apenas numa firmeza e sobriedade maior, como numa capacidade típica do cinema francês (desde Carné, Vigo, Claire e Renoir) que contaminou até mesmo Steven Spielberg (em muitos aspectos, um herdeiro de Trufaut): a habilidade com que dirige crianças, e de fazer filmes a partir do olhar delas. Mesmo Café com Leite, um filme relativamente sensual sobre um jovem casal de jovens adultos, é narrado pela ótica de uma criança para quem as regras do jogo amoroso e mesmo as distinções entre os sexos ainda não estão claras.
O mesmo pode ser dito do atual longa e do curta que o precedeu, Não Quero Voltar Sozinho: seriam filmes sobre a descoberta da homossexualidade na adolescência, não fosse o fato de que não se pode falar claramente de escolha de objeto definitiva nesta fase da vida – supor adolescentes homossexuais é tão opressor quanto supor adolescentes heterossexuais. Ribeiro parece não se esquecer jamais que, não exatamente confusa, esta fase é ambivalente: freudianamente, a polimorfia sexual da primeira infância tem finalmente condições fisiológicas e anatômicas de ser exercida e se experimentar – “mais tarde é agora!” Antes de ser um longa sobre a homossexualidade na adolescência, ele é sobre a ambissexualidade que se esvai a partir da adolescência – com o trunfo de que a ótica em questão é aquela que pode ignorar a visualidade do corpo: seu personagem principal é cego (vai nisso também uma certa teoria do cinema: uma visualidade sobre o erotismo do não-visto e do não-visível – o cinema, afinal, nos lembra Bresson, pode também ser feito de sons sem imagens tanto quanto de imagens sem sons).
O adolescente cego Leonardo pode inclusive se tornar um personagem de ciclo do diretor, como o foi Jean-Pierre Léaud – para isso, Daniel Ribeiro precisa evitar o equívoco que se inseriu entre seu longa e seu curta: um não é nem a extensão nem a continuidade do outro; são soluções paralelas e realidades mutuamente excludentes para a mesma trama. Inclusive aí está um defeito de seu longa: passagens didáticas e solução dramática fácil, enquanto a do curta foi muito mais sofisticada e surpreendente. Mesmo assim, há enquadramentos primorosos, como na cena em que Leonardo toma banho e a câmera acompanha pedaços do seu corpo, em close, através do vidro embaçado do box; ou algumas conversas no pátio do colégio, em que se colocam planos pictóricos em distintos níveis de profundidade através do uso inteligente da arquitetura do cenário (janelas, portas, gradis, sombras, etc).
Em tempo: quando aponto que a homossexualidade em Daniel Ribeiro é aceitável a um nível novelas da tarde da TV Globo, não vai aí um reprocho – talvez este recuo tático seja um trunfo para inocular outras questões, estas sim relevantes.
One Comment