A Reverência do Adeus

27/03/2014 at 12:11

Este ano, Hayao Miyazaky lança um filme com intuito de encerrar sua carreira de quase 30 anos – como Ingmar Bergman ao filmar Saraband, despede-se em vida da arte de, como diria Felinni, “dar tiros na lua”.

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Não o faz com um filme qualquer: Vidas ao Vento é atípico na produção do cineasta, e não alcançando a genialidade de Shihiro ou Princesa Mononoke, apresenta ainda alguns problemas de roteiro, como certas passagens excessivamente didáticas.  No entanto, é mesmo no roteiro que está o trunfo desta película – não obstante, sempre, o esmero visual alucinante do mestre.

A primeira mudança fundamental é um afastamento da estética surrealista que o marcou. Não se trata de não haver cenas oníricas na fita, mas todas estão ligadas a situações infantis, e são raras. Em geral trata-se de um filme realista, e mesmo no sentido do Realismo Social japonês anterior a Akira Kurosawa: há enquadramentos que lembram Yasushiro Ozu, a estória tem tudo de Misogushi e os personagens parecem saídos da pena de Mykio Naruse – com direito ao questionamento da modernização conservadora do Japão entre Meiji e Hirohito, e do lugar da mulher e sua autonomização apenas relativa na modernidade nipônica.

Aliás, é um filme cujos personagens são adultos, por vezes sisudos, em que não há qualquer apelo a magia, e comparece até certo erotismo – isso num cineasta que mesmo em filmes com temática filosófica adulta e roteiros complexos, usava alegoricamente de personagens e recursos infantis.

O outro ponto é o distanciamento da literatura de fantasia anglófona, sem se afastar da literatura ocidental – bem ao contrário, há longos momentos de citação explícita e implícita de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e a epígrafe, que comparece ao longo da obra várias vezes em falas de personagens, é de Paul Valéry: “O vento se ergue; devemos tentar viver“.

Sobretudo, é um filme fundamentalmente político e histórico. Certo, Miyazaky sempre esteve próximo da politização ao abraçar a causa ecológica (sem resvalar pro veganismo) em algumas de suas mais belas obras; agora no entanto trata-se de uma coisa mais aguda e específica: a reconstrução do papel da subjetividade japonesa na industrialização e na adesão ao nazi-facismo. Os personagens centrais caminham como cegos em direção ao totalitarismo que ao mesmo tempo repelem mas contribuem para que surja; o fetiche tecnológico precário convive lado a lado com uma lógica cultural agrária e lenta de um país ainda muito pobre e costumeiramente devastado por terremotos.

O tratamento narrativo aliás, ao mesmo tempo filmando uma massa nacional e agudizando-se em subjetividades singulares que espelham e problematizam a massa, em tudo lembra de um lado Cecil B. DeMille e de outro David Lean, particularmente em Doutor Jivago: as cenas superpovoadas em estações de trem contrastam, no melhor da era de ouro de Hollywood, com a intimidade doméstica radical e mesmo sensual dos momentos de matrimônio do breve casal do filme.

É um filme que não agradará, provavelmente, aos fãs do mestre fantástico da animação japonesa; contudo crucial e necessário, particularmente por sua elegância e classe, e como uma forma de Hayao ao mesmo tempo se inscrever definitivamente, recordar e fazer uma reverência a todo um grande cinema social de estúdio que lhe precedeu, influenciou, e que garantiu os melhores momentos da sétima arte, no Ocidente como no Oriente.