O Neoliberalismo de Si
Ao lerem o que se segue, tenham em mente
que só um conservador rigoroso pode ser um grande libertino
uma vez que, no dizer de Karl Kraus, o libertino não é um hedonista
mas “Alguém que ainda tem o espírito
onde todos os outros só têm um corpo“
Um certo paradigma atual me incomoda muito – marcado por um hedonismo fútil que teria por marcas o uso recreativo de entorpecentes, a sexualidade sem angústia e em geral a fantasia da liberdade sem esforço. É evidente que desde que existe civilização parte da diversão, e de suas outras ritualísticas, passam pelo uso de drogas (bebe-se durante processos de luto, por exemplo); que o erotismo é uma forma de estabelecer uma confiança sólida e de colocar os envolvidos (geralmente um casal) num hiato do mundo, no qual se possa descansar dele.
Ninguém nega que boa parte destas tecnologias serve para negar a realidade em nome do princípio do prazer, e a própria prática de liberdade mira este efeito. A diferença na contemporaneidade está na idéia de que estes resultados são gratuitos, e não fruto de um esforço mais ou menos sofrido – sintomas do que Mario Vargas Llosa recentemente chamou de “civilização da diversão”.
Na verdade, estes efeitos invadem o campo da cultura como um todo: o que são as performances senão uma forma fácil e preguiçosa do que um dia teve a dignidade de se chamar teatro? O que é essa idolatria juvenil por Clarice Lispector senão mera letargia fisiológica de encarar clássicos volumosos e que requerem tempo e trabalho mental e afetivo esmerado? A cultura sempre foi prazerosa secundariamente aos esforços que exige; hoje, ela se coloca como aquilo que nos leva a não ter de fazer qualquer esforço. No limite, seria como alcançar um orgasmo automático e pré-fabricado, sem todas as exigências de tempo e trabalho na ausência das quais o coito sexual não ocorre.
Chamo de “neoliberalismo de si” esse paradigma mais amplo, porque ele está contaminado de ideários políticos, mormente de uma esquerda anti-neoliberal (ou anti-neoconservadora) que joga fora o melhor que o conservadorismo, a parcimônia e o liberalismo clássico tinham, e aí se iguala a seu adversário. Por exemplo, nos discursos pela legalização da maconha e descriminalização das drogas, a que obviamente sou a favor: em geral os defensores são usuários contumazes, e não se colocam o problema de que legalizar a maconha passa também por criar uma ecologia subjetiva de seu uso – ecologia essa que implica em engendrar sujeitos tão soberanos que em geral se recusem a este prazer fácil em nome de outros ganhos maiores, mais penosos. Com Freud, estou falando de Sublimação: o melhor de todos os mecanismos de defesa, o único em que o Eu está completamente senhor de si (no chiste ele divide o blefe com o Isso, o que já é alguma coisa), é hoje uma arte tão antiga quanto escrever cartas, construir um laço amoroso não só apesar mas sobretudo a partir das dificuldades do outro e das suas próprias. E não há civilização possível sem sujeitos paulatinamente mais capazes de sublimação – e de auto-governo.
Colocando em termos illichianos, pode-se dizer que os neoliberais-de-si, ao passo que querem menos Estado (no sentido comunista de querer menos estado), ainda têm fantasias heteronômicas – nem que seja a idéia de que um outro, a bebida alcóolica por exemplo, é que trará prazer em si. Ora, ela é parte da fonte de prazer, e pode também ser parte da fonte de desprazer – e pode também se ausentar de um prazer que ainda assim seria tão ou mais grandioso. Não há, a rigor, uma busca de autonomia – o que fica bem representado, no limite, pela grita dos Queer em nome da transexualização. Não estou certo de que a transexualidade sempre existiu – para mim, ela tem tudo de uma “doença causada pela oferta tecnológica”; que em outras civilizações e outros tempos houvesse sujeitos que ocupassem um gênero (vá lá…) dissidente em relação ao seu sexo anatômico, isso nada tem a ver com cirurgias de mudança de sexo; bem ao contrário, nestes outros contextos havia desenvolvimento de tecnologias subjetivas singulares de cada sujeito em sua comunidade para lidar com isso. Antes de devirem-mulher no corpo, devinham-mulher apesar do corpo e a despeito dele – o que é muitíssimo mais sofisticado!
Em cascata, isso afeta toda a cadeia do “não escolhi, tenha dó de mim” das Viadagens Institucionais. Meus caros, na clínica psicanalítica até uma esquizofrenia paranóide é uma escolha edipiana do sujeito – se não se aposta que tudo que ocorre na vida psíquica é uma decisão autônoma de cada indivíduo (muitas vezes forçada, contra si mesmo, e nunca livre ou no vácuo), se está infantilizando os mesmos e atribuindo a um Outro institucional/industrial o domínio destes corpos e destes espíritos e o poder sobre os mesmos.
Claro que, como o próprio Ivan Illich já mostrou, o neoliberalismo-de-si (a fantasia de que “alguém pode vestir um idiota melhor do que um idiota se veste a si mesmo” – na célebre metáfora de Lewis Mumford que Jane Jacobs adorava) vem do welfare-state – Grande Pai Estado do Bem que, oferecendo serviços e benesses e sendo (aparentemente) pouco punitivo produz uma massa infinita de aleijados subjetivos (além da dívida, é claro). Mesmo os anarco-sindicalistas e suas idéias autogestionárias caem nesse engodo: um coletivo horizontal é uma alienação dos eus individuais num eu coletivo, tornando os eus individuais menos Imperadores de Si.
E, por outro lado, é nos clássicos que se pode achar as ferramentas de construção interior de sujeitos soberanos de si contra o mundo que nos rodeia. Mas aí este meu ensaio mordeu o próprio rabo: quem quer tal esforço em tempo de diversão fútil ubíqua? Por outra, voltando aos exemplos do início, não se trata de que a experimentação psicotrópica, sexo plural e amor livre, não possam ser formas através das quais um sujeito construa sua Soberania de Si – são meras ferramentas, que podem ser usadas de modo convivial ou alienante. A questão é como: se há parcimônia mental, austeridade, e sobretudo inquirição, questionamento, construção solitária de resposta (a partir, é claro, do contato íntimo com os outros); ou se, ao contrário, se está buscando no mero prazer a resposta em si, e não há subversão íntima feita com esforço, no amor um conforto congelado pré-cozido de microondas, e não um trabalho de cultivo de horta, de esmero e de paciência. Tanto quanto os clássicos podem ser um refúgio em si do mundo torpe que nos rodeia, e não uma forma de enfrentá-lo por dentro dele.
Dádiva, afinal, não é dom: não é ausência de trabalho, mas um trabalho convivial não-alienado. A liberdade é, enfim, um exercício penoso e ininterrupto, work-in-progress interminável (e não uma condição dada desde fora) – e enquanto tal, não será jamais de todos ou qualquer um: apenas daqueles que, como Sísifo, a fazem por merecer.