De hospício a jardim de infância
“Uma metrópole atenderá às necessidades e aos desejos de todos
quando, e somente si, for feita não apenas para todos
mas por todos”
Jane Jacobs
Evitei até agora fazer um arrazoado sobre o primeiro ano da gestão de Grampinho a frente da Reconvexa, primeiro porque em comparação com João Henrique qualquer porcaria soa como bom prefeito (porque, simplesmente, se é prefeito), e ademais porque nem todas as ações de Grampinho tem sido equivocadas. Cito como acerto, apesar da chiadeira mal-informada de certa esquerda que ignora o específico do espaço, a revisão de valor venal de imóveis de modo a corrigir distorções do IPTU (inclusive ampliando pra cima a faixa de isenção), o estabelecimento de bilhetagem eletrônica universal com integração tarifária plena, e agora a redução das linhas de ônibus e da frota dos mesmos em Salvador.
Revisão de valor venal de imóvel vai no fígado da classe média alta rentista que o elegeu e o apoia. Malvadeza Neto não fez isso por qualquer inflexão ideológica, é óbvio, mas sim premido pelas contradições próprias de uma cidade “de economia especulativa pura” (para citar Milton Santos): de algum lugar ele haveria de obter renda fiscal estável e robusta para que Salvador fique menos dependente do Governo Estadual (dependência criada e acirrada, diga-se, por seu avô), e aí vai ter de morder a faixa mais caras dos imóveis, mesmo. A esquerda, se pensasse, apoiaria esta medida como precedente importante para se aplicar a progressão do Imposto Predial Territorial Urbano no tempo e no espaço; e se houve chiadeira de comerciantes, foi muito mais das grandes redes de supermercados e shoppings (que, lembremos, além de IPTU deveriam sofrer outorgas onerosas constantes, o que nunca ocorreu), e não dos pequenos comerciantes de rua.
Quanto a redução das linhas e frota de ônibus, como consequência da bilhetagem única universal, é uma contrariedade frente a SETPS, máfia do buzú que desmanda na cidade desde quando, na Ditadura Militar e em seu prolongamento cabeça-branca, extirparam os bondes, os navios regulares para Cachoeira e Maragogipe, os trens para Alagoinhas, os saveiros para as ilhas, os ascensores funiculares e elevadores – enfim, desde que retiraram tudo que desde Segundo Império fazia de Salvador a Rainha-Mãe do Atlântico Sul. Salvador tem linhas de ônibus tortuosas, superpostas, e com frota excessiva – é isso que torna o sistema lento e o ônibus lotado; replanejar isso a partir da possibilidade de o usuário tomar quantos ônibus quiser ao preço de uma só passagem até seu destino final é louvável e libertador, sim.
Isto posto, sua gestão está longe de ser para o bem, e mesmo o decantado “aproach técnico” do carlismo nele não aparece: suas ações são desgarradas umas das outras; não se trata apenas de que o Governo Municipal não dialoga com a população, e apenas lhe impõe certas benesses – as próprias Secretarias não dialogam entre si! Um exemplo: uma dada Secretaria leva a cabo um programa de deslocamentos cicloviários, com bicicletas públicas e algumas ciclofaixas (nem todas, justiça se faça, de lazer); o programa em geral é equívoco e canhestro, mas é melhor do que a porcaria estadual do Cidade Bicicleta, e o chama erradamente de “Movimento”.
Ora, se é um programa de mobilidade precisa se integrar com outros transportes: no mesmo período, a Avenida Paulo VI sentido orla tornou-se uma via exclusiva para ônibus – corrreto, mas por que não compartilha-la com bicicletas? Mesmo a ciclofaixa do Corredor da Vitória é fútil e inútil, se se rearranjasse a distribuição de pontos de ônibus nesse trecho (4 em menos de 3km – outro problema de Salvador é o excesso de pontos de ônibus, muito próximos uns dos outros, gerando diversas paradas e retomadas no sistema) e se eliminasse as vagas de carro ao longo da via.
Enfim: se com João Henrique viviamos um hospício, isso tinha lá algo de involuntariamente libertador; com o Prefeito Netinho as coisas estão positivamente melhores, mas tão aprisionantes quanto um jardim de infância – no qual ele brinca de playmobil com a mais antiga cidade das Américas.
A gota d’água contudo é a ideia asinina recente de estabelecer curraizinhos para revista prévia de quem for entrar nos circuitos do carnaval. Ora, se sabe bem através das pesquisas da SEI com a SECULT-BA sobre comportamento do soteropolitano durante o carnaval, que dentro do circuito a segurança é praticamente um fato consumado tanto maior quanto mais livres a circulação de gentes (com menos camarotes e menos cordas); e, diga-se, a tecnologia de controle de multidões para festas de largo que a Bahia desenvolveu mesmo sob o carlismo é referencia mundial. A violência do carnaval de Salvador fica fora dos circuitos, no seu entorno imediato e em bairros mais remotos que se esvaziam (porque o folião foi pro circuito ou porque saiu da cidade e viajou ou porque a vida comercial esmoreceu nos dias de folia nestes bairros) – uma tal medida vai aumentar a violência nas duas pontas. Ela é a corda elevada às últimas consequências, inclusive porque visa antes de tudo limitar o consumo àqueles produtos que patrocinam a festa.
Pros que ainda caiam no engodo da dicotomia Carnaval Estatal (de Recife, que doa dinheiro público pra estrelas da MPB e deixa maracatús com pires na mão às vezes domindo na rua) X Carnaval Privado (do Axé-System), eis um belo paradoxo: o Estado agora age não pelo, mas como, empresário, visando “ter lucro”. E o Governo Estadual, que quando tinha Marcio Meirelles nos seus quadros enfrentou bem a questão, agora, recua: seja pelo Secretário de Segurança Pública Maurício Barbosa ignorando os dados da pesquisa SEI-SECULT e falando de “2milhões de pessoas nas ruas” (são 500 mil por dia, não mais), seja por Albino Rubim fazendo um Edital Carnaval Pipoca reformulado no sentido de não ter mais trios (o que é franquear de novo a avenida e a barra para a monocultura monoestilizada, de preferência com cordas). Não chega a ser novidade: das poucas vezes que Albino encampou a Política Carnaval Pipoca, não disputou os horários de saída (o que Marcio fazia com unhas e dentes: pipoqueiro ideológico que é, sabe bem o que isso significa de visibilidade) e teve BaianaSystem saindo na Barra com o sol a pino de 3h da tarde – só mesmo pelo milagre de Russo Passapusso lotou, e mesmo assim só já descendo Ondina.
Que o Direito a Cidade é sobretudo o Direito a Festa como Dádiva não resta dúvidas, mas em Salvador a lógica dobrou o cabo da boa esperança e se tornou a Compulsoriedade da Festa em Dívida Infinita. Não se romperá isso apenas ocupando o aparelho de estado (embora a utopia prática da Reforma Cultural Baiana tenha sido taticamente crucial), mas subvertendo radicalmente isso: sequer Direito à Festa (concedido, ou pedido, ao Estado), mas Liberdade da Festa. Na prática, é hora de nós do Anti-Axé (BaianaSystem a frente, espero eu) negarmos radicalmente qualquer circuito estabelecido. Que tal um palco aberto no Engenho Velho de Brotas, meio como era o Palco do Rock de Piatã, mas não limitado ao rock?! (Ou meio como era o Bahia de Todos os Sons, de quando Pedro Pondé estava a frente d’O Círculo). Que tal fanfarras na Pituba, Ruas Amazonas, Ceará? Ou que o Pagodão que usa e abusa do Best Beach volte a realizar a Segunda-Feira Gorda da Ribeira? Aí sím, Salvador pode voltar a ter Carnaval, ao invés do Carnaval ter Salvador. E se for o caso financiar isso com crow-funding, vaquinha e passando o chapéu.
(Em tempo: vale lembrar que esta segregação de usos que Grampinho coloca – que vai dos curraizinhos carnavalescos e passa por ciclofaixas onde compartilhamento seria solução melhor e vai dar em trancamento de praças – já deixou ao menos uma vítima: o menino que morreu assassinado no Campo Grande em meados de 2013 foi morto na madrugada do dia seguinte em que a Prefeitura achou que seus guardinhas azuis – que agora terão arma de fogo! – em automóveis seriam mais capazes de vigiar uma praça do que moleques de skate, patins, bike, casais namorando, gente fazendo palhaçaria e malabares até 2h da manhã e toda a diversidade que o Campo Grande tinha antes de ser higienizado)