O legado de Eastwood

02/01/2014 at 22:10

para Rômulo Henrique, saindo da rodovia pedagiada

em seus descaminhos de atalhos vicinais tardios

(oxalá lhe sirva de placas indicativas

 no mapa que está a construir)

 

para meu avô Alexinaldo (in memoriam),

em suas aleias ajardinadas.

Mais do que seus filmes, a personalidade mesma do homem Clint Eastwood me lança quase sempre uma imagem onírica: com sua virilidade empedernida, mas contida, Clint entra numa sala, silencioso, em que vários machos mais jovens galhofeiam sem sentido, desperdiçando-se em exibir uma masculinidade de blefe; Clint os olha sombraceiro, esperando que se calem, e uma vez calados senta-se lentamente (de pernas abertas, ranço de cowboy) e profere, como quem descarta um Royal Street Flush ao mesmo tempo em que abdica de ganhar a aposta, com sua voz rouca e um tanto abafada – “Gentleman, there is no shame in being sensible!“. Para-além da epígrafe, quero tomar esta frase como imperativo categórico e declaração de princípios de uma identidade dos homens enquanto homens ainda a ser construída (talvez a partir de ruínas reconditamente perdidas).

* * *

O século XX assistiu a um crescente elogio da feminilidade, seja através das feministas, dos movimentos GLBTTWZ-KY ou dos queer. É certo que essa busca da feminilidade não é idêntica nos três, embora nos três seja superficial: o gênero, mero artifício imaginário, que nada tem a ver com a posição sexuada do sujeito frente ao seu desejo (não-todo, insatisfeito, que não cessa de não se inscrever, etc.) e a sua fantasia sexual. Não obstante, o imaginário das reivindicações de gênero não deixa de ser uma resposta, talvez um sintoma, a esta hiância fundamental entre o real sexual e o simbólico do erotismo.

Esta movimentação social se justifica pela selvageria opressiva da masculinidade anterior, é verdade, mas acaba jogando fora o bebê junto com a água da bacia, quando não sofrendo de paralaxe com um desencontro entre aquilo em que mira e aquilo em que acerta. Por exemplo, a feminilização da vida apenas fez o Estado mudar de paternalista para maternalista – o que é igualmente alienante de um modo mais sutil na sua hiperprotetividade; ou ainda, o fim das diferenças de gênero, como nos lembra Ivan Illich, não deveria ser uma demanda do feminismo – o próprio capitalismo extingue a diferença entre os sexos para produzir exército industrial de reserva, e aí é que está o problema: movimentos sociais a partir da identidade sexual deveriam, isto sim, lutar para a redivisão dos gêneros embora agora de uma outra forma.

O pior mesmo talvez tenha sido a anulação completa de uma masculinidade positiva, a que podemos chamar de Cavalheirismo. O cavalheirismo que as feministas e os queer chamam apressadamente de “machismo edulcorado passivo-agressivo”, e que na verdade é anti-machismo a conta-gotas, o machismo esvaziado por dentro – consistindo na abertura para o outro como democraticamente equânime, e não apenas o outro gênero ou o outro sexo; o cavalheirismo passa pela soberania subjetiva de, em pleno poder viril, abdicar deste poder em nome de um outro homem ainda que não se o preze – a masculinidade esgrimida com arte, contra a selvageria.

(Lembro do momento em que meu avô materno soube que larguei a graduação em Medicina. De todas as pessoas, ele é quem mais poderia ter reclamado. Eu passara o último ano inteiro numa rebeldia de vestimentas que atacava sobretudo sua heráldica conservadora – ele que trajava apenas Elle & Lui, Hugo Boss e Lacoste -, usando saias, tendo metade da cabeça raspada e a outra metade com cabelos desgrenhadamente compridos, brincos nas unhas e tatuagem de hena na testa. No entanto, meu avô Alexinaldo não fez mais do que falar em tom baixo e seguro no telefone, respirar fundo e, numa pausa na qual certamente seu lábio superior tremeu como sempre tremia ao conter uma reprimenda, disse a um moleque revoltadinho de 18 anos de idade: “Você que sabe, já é grande o suficiente para escolher”. De todas as pessoas, foi a única que nunca mais voltou ao tema de eu ter abandonado o curso de graduação aristocrático por excelência – a única, também, a perguntar com real interesse como estava minha inserção na Psicologia e na Anti-Medicina de um modo geral. Cavalheirismo, senhores, é isso. Foi assim que aprendi a ser homem, em aleias palacianas).

* * *

No Brasil, particularmente, o acesso a masculinidade é uma rodovia pedagiada (isso não deixa de ter uma relação transversal, mas não direta, com a escolha objetal sexuada): para ser homem é preciso uma identificação maciça com uma virilidade bruta, quase sempre assentada na tríade futebol (em especial o de time e de estádio, já que há um futebol inclusivo e convival: o salãozinho de praia), brigas físicas na escola ou na rua (redivivas hoje pela patologia desportiva das lutas de MMA), e objetificação das mulheres de modo a fazer delas valor de troca (quantas e quais você está comendo? quantas comeu? quando começou a furar uma buceta? foi com puta, ou descabaçou alguma?) e menos valor de uso.

Ai de quem não pode, ou se recusou, por algum motivo a tomar esta via! – sua identidade como homem vai ter de ser construída, se o for, através de picadas abertas a facão, estradas vicinais esburacadas e mal-sinalizadas, embora é verdade com vistas belíssimas e, se o sujeito faz sua travessia, chega do outro lado mais rico e talentoso, mais diverso nem que seja por não ter contraído dívidas a título de ser homem, mais senhor de si – mais homem, embora de um modo menos óbvio.

Por muito tempo considerei que era mais fácil para um sujeito fazer uma escolha, ou uma descoberta, homossexual tardia uma vez já estando dentro da rodovia pedagiada – quantos bons parceiros não encontrarão esses meninos que, tendo construído sua imagem de macho sem máculas e sem erros de leitura, só depois passam a gostar de outros meninos! Ledo engano: este acidente desejante torna tudo mais atravancado: sua identidade abre rachaduras e vazamentos diante dos quais ele não sabe o que fazer; seu tesão pelos rapazes, por mais que seja vivido na prática, sofre sempre limitações inexplicáveis e pouco econômicas; seu desejo pelas mulheres, que ao meu ver segue legítimo, tartamudeia, gagueja – e eles terão de fazer longos retornos na rodovia, abandonar o carro e abrir trilhas vicinais quase sem instrumental para tanto. Se vêem, talvez, sozinhos pela primeira vez, e sem qualquer tecnologia de solidão para articular isso.

E assim como os que tiveram acesso a sua masculinidade pelas estradas vicinais não têm todos escolha de objeto homossexual (a maioria porta uma heterossexualidade dissidente, assonante, mas heterossexualidade ainda exclusiva), o mesmo vale para a estrada pedagiada: mesmo dentro dela com pleno desejo heterossexual, nenhuma hipótese de rachadura ou contradição, o custo disso para si e para todos os outros é altíssimo e se paga nem que seja com as antípodas da máxima eastwoodiana que abre este ensaio: a negação da sensibilidade como coisa de mulherzinha, o “homem não chora“.

* * *

Aí reside o grande erro tático da Viadagem Institucional, das feministas e dos queer. De um lado, as feministas não buscaram feminilizar os homens mantendo-os masculinos, mas sim tornarem-se elas próprias mulher-macho e feminilizá-los ao limite da impotência – uma reação histericamente ressentida. De outro, a Sopa de Letrinhas não percebeu que apenas uma minoria dos sujeitos com escolhas objetais homossexuais se colocam o problema da feminilidade como central – talvez os sujeitos mais frágeis, sem dúvida: as bichas pobres de periferia, cujo repertório semiológico é tão parco que as faz confundir desejo, identidade e real do corpo. A larga maioria dos homens que de alguma forma desejam homens (ou cuja masculinidade é dissidente), dentro ou fora do pedágio, não é sequer tocada com isso – já que as questões que se colocam, e que os libertaria, são as mesmas desde os tempos de Xenofonte: como ser homem desejando outro homem? como continuar desejando as mulheres apesar disso, ou a partir disso? a quem interessa que assim o seja? enfim: sou soberano de mim? como virei a ser?

Os queer nisso elevam o absurdo à pantomima: a feminilização chega ao limite de que todo mundo, no fim das contas, é transsexualizável, que a inquirição da masculinidade é uma invenção apenas do século XIX (na verdade, é aí que ela entra em ocaso…), fruto meramente da disposição arquitetônica dos mictórios, e outras queijandas imbecilidades.

As soluções têm sido, para manter a metáfora rodoviária, fazer um buzú fretado em que dentro estarão barbies, ursos, bichinhas fashion, travestis e sapatão para baratear o preço do pedágio – quando tenho dito há muito que as Viadagens Institucionais têm muito o que aprender com o movimento cicloviário.

Para aqueles que defendem os modos de transporte não-motorizados e de propulsão humana (bicicleta é apenas sua epítome), não interessa tanto demandar do estado uma certa infraestrutura, mas pegar pela mão um a um dos que querem mudar os modos pessoais de uso da cidade e ensiná-los em rede, com paciência, horizontalmente. Chama-se a isso de bike-anjo.

Este trabalho microfísico e do comum os GLBTTWZ-KY nunca quiseram fazer. Por exemplo, usar os chats de pegação (lá onde o desejo vira mero gozo porque desritualizado, sem metáforas) para, com sorte, ao seu avesso, pacientemente fazer um do-in libidinal, uma acupuntura afetiva, irrigá-lo de metáforas e de ritos a serem inventados, não para que o sujeito “saia do armário”, mas sim da dívida pedagiada de sua masculinidade – usar o desejo menos como problema psicossocial e mais como instrumento revolucionário. Marx nos diz que o sujeito sozinho não é livre, mas a coletividade enquanto tal também nunca se libertará – trata-se de contaminar dadivosamente, e permitindo-se contaminar, em fractal, com minha liberdade o outro que quer também ser livre. Levar o sujeito a cavalgar (ou pedalar) o próprio desejo, no limite devir-centauro.

Assim, ao invés de a homossexualidade ser um problema na, ou da, ou para a masculinidade, o contrário: a identidade de macho passa a ser algo compreensível a partir do desejo pelos homens – como aliás o era para o Imperador Adriano.

E nem proponho isso para que se “deixe de ser heterossexual”, se é isso que o sujeito quer ser (embora seja improvável que diante dos afetos, dos desejos e das inquirições subjetivas, tais identidades se mantenham); antes o contrário: para que os sujeitos possam ter a liberdade de serem heterossexuais; uma vez que a heterossexualidade hoje é, mais do que compulsória, endividada, transformá-la em mero direito já seria uma subversão.