Acertando no buraco errado
Confesso que fui assistir hoje a Bloody Money (aquele filme anti-abortista americano com ares de Grand Old Party), numa posição estrategicamente de me submeter a uma experiência democrática radical (abrir-se ao convencimento de argumentos antagônicos) e taticamente com a mesma postura que tenho em relação a maconha: detesto-a, e por isso quero-a legalizada (acho o aborto a prática mais abjeta possível, e por isso quero-a submetida a todas a transparência e escrutínio possível).
Isto posto, cabe dizer que o filme tem argumentos bastante sólidos, que as esquerdas, as feministas, os queer, os libertinos e todos quantos marginais libertários deveriam levar seriamente em conta – embora, claro, toda a prosódia do documentário (embora não sua sintaxe, bem mais científica do que se possa supor) seja cafona, emotiva e indisfarçadamente religiosa.
Focarei em um argumento, ao meu ver bastante contundente porque toca num ponto em que sempre insisto: a ingenuidade da “auto-gestão” sem levar em conta a superestrutura, a alienação e a existência do inconsciente freudiano (os termos, marxizantes, são meus, claro, e não da obra em tela). No caso da interrupção voluntária de gravidez, se trata do seguinte: quem disse que a descriminalização do aborto garantiria às mulheres o “direito de escolher”? Quem garante que esta escolha (como de resto qualquer outra) é livre? E ainda que livre sendo, quem garante que ela não tem boas doses de pulsão de morte, ato falho, mau passo?
Nada, em rigor. Aliás, tudo leva a crer que, em não mudando-se nada mais, as mulheres brasileiras com acesso ao aborto legalizado não seriam menos oprimidas do que as que têm gravidezes compulsórias hoje; a emancipação das moças (que passa menos pelo desempoderamento dos homens do que as feministas supõem, e muito mais pelo empoderamento de ambos) só se dará com a extinção material (e não meramente ideológica) da servidão voluntária – e esta servidão voluntária está dada mesmo antes, no ato da cópula, quer em negá-la (em respeito ao Pai, ao Pastor, etc.), quer em dar a perseguida (em respeito a ideais Pussy Power / Marcha das Vadias, ou ao bofinho que lhe as vai comer – ou a ambos, já que sua exclusão mútua como fatores é meramente aparente).
Contudo, o filme acerta no buraco errado ao atribuir o maior problema do aborto legalizado à plutocracia que o rege. Ora, isso é da ordem da medicina (e se leva a indústria do aborto, leva também à indústria do parto artificial), e em última instância do capitalismo. Claro que a legalização paulatina do aborto com ausência de um Estado que vigie tais procedimentos, e de um sistema de saúde capaz de realizá-lo sem ônus ou bônus, é um problema ainda maior; ocorre que os Republicanos que se opõem a legalização da interrupção voluntária da gravidez (e há entre estes conservadores de boa cepa, que remetem a Lincoln e Luther King – não estou falando, portanto, de brucutús neoliberais) também se opõem a um sistema de saúde pública universal!
Para-além de uma contradição discursiva, há certa razão nisso sem sequer recorrer aos argumentos de Ivan Ilich (para quem, ao cabo, um sistema de saúde estatal ou privado dão na mesma merda, e ele afirma isso com propriedade: o problema é a tecnologia heteronômica que sempre reduz a autonomia e engendra desejos impossíveis, como viver eternamente sem sofrimento): um sistema público de saúde americano redundaria, num primeiro momento, em compra de serviços privados pelo estado. Não é sequer aquilo que o SUS brasileiro faz hoje, em determinados setores – é muito mais algo como a saúde previdenciária do fim da Ditadura Militar. O horror, o horror!
Não obstante, os Estados Unidos da América sequer regulam sua saúde suplementar – enquanto um dos trunfos do Brasil é ter um sistema misto bastante regulado: os planos de saúde passam por redea curta da Agência Nacional de Saúde, paulatinamente mais exigente, e o Sistema Único de Saúde é mais caudatário da saúde coletiva que da pública – com um coringa na manga: os hospitais filantrópicos, capazes de inovação como o setor privado, mas perfeitamente dentro da lógica universal e transparente da Reforma Sanitária Brasileira, e com uma experiência secular sobre como articular na prática saúde, pobreza e exclusão social. (Evidentemente, há um problema de fundo e de longo prazo num sistema misto: o setor privado gera demandas e desejos que o sistema público, coletivo e universal não consegue alcançar – e a rigor nem deveria, nem precisaria, mas fica instado a tal. Sobre isso, nunca é demais ler os professores Carmem Teixeira e Jairnilson Paim – este último, dos homens mais elegantes com quem já dialoguei, portador da simplicidade dos sofisticados).
Nada disso se aplica, é verdade, a realidade brasileira: se por um lado temos o SUS e a ANS, o grande irmão do norte tem uma população menos pobre, com distribuição de renda menos discrepante, e com muito mais empoderamento em geral (particularmente em relação às mulheres, negros e populações marginais). De modo que, por ricochete, esta película nos serve de contraponto, sim.
Poderia dizer, a título de piada, como Juliana Cunha um dia disse no seu antigo blog: que se o aborto for legalizado, é preciso legalizar também o estupro – de mau-gosto como seja, esta afirmação revela algo: todo o processo reprodutivo humano, do flerte ao parto (ou ao aborto) requer uma ecologia do desejo. Não se trata de que sob o capitalismo uma tal ecologia do desejo não exista – ela existe instrumentalmente em direção à dívida, portanto é entrópica; trata-se de construir uma ecologia tautegórica e dadivosa, como de outrora e ainda completamente nova, em que o parto natural não seja uma dúvida porque um fato consumado, e o aborto não seja uma querela porque virtualmente desnecessário.
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