Deglutindo Bressane
para Bruno Cava
“O cinema é um breve hiato de 100 anos
entre o daguerreótipo e o digital”
Quarta-feira à noite, em dois passos, cheguei a dar uma volta em espiral dialética completa: ao entrar numa sessão da mostra competitiva nacional do Panorama Coisa de Cinema, para assistir ao curta de um amigo, eu apenas suportaria o longa de Júlio Bressane que ocorreria na seqüência – talvez, como muitos, nem isso e simplesmente sairia da sala no meio da sessão para voltar depois ao debate com os realizadores. Bem ao contrário, fiquei, ao longo da sessão, num estado de sublimidade e graça que me fez finalmente não só deixar de detestar o mestre, como também passar a amá-lo. Tal admiração cresceu no debate, com suas respostas pausadas e complexas, dadas com suavidade, quase homilias jesuítas, algo entre Santo Agostinho e Jacques Lacan – para, justo neste debate, eu voltar a detestá-lo agora por motivos opostos (e contudo idênticos) ao que me injuriava antes: o grande cineasta dialético se mostrava, ao fim e ao cabo, na melhor das hipóteses, um idealista hegeliano.
O que sempre me incomodou em Bressane era sua pomposidade eruditista, meio metida a Visconti e Antonioni (ou, por outra, Walter Hugo Khouri) sem chegar a ser mais do que um pastiche destes. Claro, isto não se aplica a Matou A Família E Foi Ao Cinema; para dizer mais simplesmente: não via nele alguém do udigrudi e da boca-do-lixo, diferentemente de seu parceiro Sganzerla que via enormes potências no chorume da cultura de massas, Bressane parecia uma Escola de Frankfurt extemporânea.
Ao assistir Educação Sentimental, contudo, algo se revelou: sua referência é menos Visconti e mais Resnais e, enquanto teoria, Godard – isto é: um cinema ostensivamente literário não porque operístico, ou adaptador de romances (não ficando, portanto, subalterno à literatura) e sim porque ensaístico; um cinema capaz de construir pensamento lógico rigoroso, e não apenas reproduzir narrativas, através de imagens. E, desta forma, Bressane fazia o cinema, essa arte efêmera porque ilusoriamente eterna no instantâneo, se aproximar da função que a filosofia alcança no intervalo em que o tomismo já não era e o cartesianismo ainda não viera a ser.
Explico: durante a Renascença e o Barroco, posterior já a descoberta galilaica e a revolução copernicana mas anterior ainda a súmula que Newton fará de ambos, a filosofia já não portava seus temas clássicos (que ou abandonara como tralha teologal, ou começara a perder para a ciência experimental) mas ainda não tinha alcançado seus temas hodiernos; já não era a ancilae teológica de Santo Anselmo de Cantuária, mas ainda não era a ancilae científica de Kant a Piaget. Livre de toda carga, a filosofia pôde se tornar um manual prático da vida diária (contemporânea da popularização da leitura com o advento da prensa de Gutenberg), apropriando-se de temas comezinhos como a côrte amorosa (e não mais o amor como conceito), a amizade, a boa mesa, os bons modos, as descobertas de outros povos. É o mundo de La Boetie, Montaigne, Baltazar Gracian, mas também de Giambattista Vico, David Hume, Erasmo, e de outro lado da literatura galante do Antigo Regime, de Sade, Diderot e Laclos portanto.
Momento também em que os gêneros da literatura ainda não se distinguiam: o romance continha o ensaio, o ensaio era escrito como crônica, a crônica dava a refletir, a poesia não era só lírica (e pôde ter na épica, como é o caso do Paraíso Perdido, apenas um pretexto para ser filosófica no melhor sentido do termo). Isso ainda se repetirá nas outras artes: a pintura, por exemplo, do gótico tardio alemão torna indistintos o retrato da vida cotidiana, a cena bíblica e a gravura explanativa sobre viagens expedicionárias; em Bach, o minueto doméstico, a missa solene e o exercício de aprendizado para cravo se imiscuem (no limite de ele não definir a voz instrumental que quer para uma composição, como nas Variações Goldberg, ou de fazer intencionalmente as vozes se permutarem, como nos Quartetos para Cordas).
É neste contexto que Bressane é admirável: um filme em que a narrativa e o ensaio se indistinguem tanto quanto a música é uma continuidade da gravura do storyboard, etc.
E aí mesmo vem sua queda: a lenda viva da Belair insiste em dizer que sua obra tem um destino, e uma intenção, transcendental, recusando sua utilidade (que é extrema e óbvia como de um poema de John Donne), enfim negando a materialidade da obra de arte como parte da vida. Se ele insiste no caráter medieval da rítmica de sua obra (penso por contraste no sentido em que LeGoff elogia a cidade medieval como a cidade que liberta o comum da servidão agrária, as ordens mendicantes como os primeiros subversivos socialistas, etc.), trata-se ao contrário de um medievalismo, mais do que encastelado em palácios, de monastério nefelibata – e ao invés de usar esta marcha-a-ré como um ponto de apoio anti-capitalista, na verdade acaba constituindo um capitalismo de castas, totalmente platonizado.
Ora, bem ao contrário, o cinema precisa fazer parte da vida – ser útil como Marianne Moore insiste que a poesia só é boa porque ela é útil (e foi isso que garantiu que a poesia anglófona não sucumbisse à maldição do lirismo sob o capitalismo, e mantivesse força: ao oferecer-se como produto utilitário dentro dele o supera). Ao incorrer num discurso enviezadamente moralista, de que o mundo capitalista é materialista e por isso devemos buscar ideais, Bressane se equivoca gravemente: o Capital é um ideal puro, uma pura abstração que leva os homens a buscarem alcançá-lo; é o trabalho, que o capital nega e aliena, que é material justamente porque prático e diário, bem como o comum, a festa, etc. – o exercício subversivo real é, sobretudo, fazer os ideais caírem um a um, para focarmos a única vida que existe: aquela material e feita por mãos humanas. E aliás, a arte medieval justamente se indistinguia dos utensílios cotidianos (como não bem separava o trabalho da festividade): vale para uma espada, uma tapeçaria, ou uma iluminura monástica – todas serviam para algo prático antes de qualquer outra coisa.
É como se Júlio Bressane não suportasse a revolução que dispara, um tanto como parte da burguesia francesa de 1789 que, diante do Diretório, vai pedir arrego a Viena e a Santa Sé; e, se insere uma imanência dialética no fazer-fílmico/fruir-fílmico (o filme só se faz ao ser projetado e visto), é para em seguida ir em busca do Absoluto. Falta-lhe antropofagia – e, bem, azar o dele! Ser marxiano é antes de mais nada marxizar tudo, a começar por Hegel: sabê-lo crucial para o retorno a Heráclito e a derrocada do eleatismo estático, mas sabê-lo também insuficiente e sab(or)e(a)r quando e como matá-lo e devorá-lo: cru & cozido, pela frente e pelo verso.