A flipação da FLICA
Desde a primeira edição da Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, há três anos atrás, que uma frase circulava entre produtores, autores convidados e o público não-leigo: a FLICA não pode ser uma FLIP ao norte – não se pode cair no erro de Paraty, que acaba fazendo uma Festa Literária que trata de tudo, menos de literatura (embora, é claro, e nisso Cachoeira acerta desde sempre como um trunfo congênito, uma Festa Literária precisa de ter muito mais do que literatura para ter literatura).
Esta frase, que parecia um talismã passado de mão em mão, agora solidifica-se como um vaticínio: o processo de Flipagem da FLICA vai alto e largo – sem, contudo, feliz e infelizmente, gerar uma gentrificação do Recôncavo – e é este o motivo que me fez declinar de trabalhar na festa no último instante.
O embrião disto já estava antes, embora só perceptível num depois (que é o agora). A gota d’água foi a seleção de autores para este ano. Não me incomoda ter enveredado pela sub-literatura de alta vendagem, mas sim a escolha de nomes tão intelectualmente rasteiros como Luiz Felipe Pondé e Demétrio Magnóli – gente que acha por bem a Polícia Militar baixar o cacete nas manifestações desde junho, ao arrepio do que seria uma direção da ética literária como a que Luiz Rufatto apontou em Frankfurt semana passada.
O argumento do curador, Aurélio Schommer, é que se deve promover um “debate amplo de idéias” – na verdade, isso para ele não passa de democratismo. Aurélio entende que colocar numa mesa posições ideológicas, ou programáticas, opostas é enriquecer o debate – não importando se o grau de relevância intelectual entre os gladiadores é discrepante. Assim, lembro que na primeira FLICA Ana Maria Gonçalves, ilustre esposa de Idelber Avelar, teve de dividir uma mesa sobre cotas raciais em universidades com o playboy brucutú Rodrigo Constantino. Ao fim da mesa, a vi dizer a Aurélio: “Se a questão era ter alguém contra as cotas, poderia ter chamado Antonio Risério, cujo discurso é melhor lastreado”.
Um debate literário deve primar pelas sofisticação e capacidade de transmissão; se, dentro disso, campos opostos ideológicos comparecerem, ótimo; senão, uma pena, mas a vida segue. Para Aurélio Schommer, o importante é o degladiamento de idéias, não importando o estofo das mesmas – aliás, quanto mais infladas e gasosas, parece que melhor, não?
Na verdade, com isso Aurélio se esquiva de fazer da FLICA a plataforma política que deveria ser: criticando, por exemplo, a (ausência de uma) política de livro e leitura no Estado da Bahia (ou de concursos literários), com correspondente não surgimento de um setor editorial privado robusto (diferente do que ocorreu na música desde a Reforma Cultural com Marcio Meirelles a frente da Secretaria da Cultura), o estatismo imobilista da Fundação Pedro Calmon, etc. – pontos que ele curiosamente atacava bem, antes de a FLICA surgir. Mais do que uma posição de direita pouco sofisticada (Aurélio é um cara mais culto e muito menos de direita do que se julga), ele resvalou para um fisiologismo dependente do estado do qual intenta se libertar. E a FLICA virou quase um evento oficial do Governo do Estado, só que sem o ônus de práticos de produção para este (e aliás, a cada ano com verba mais pífia).
Um dos sintomas que antecipava isso era o previlégio que Aurélio, e a FLICA, davam não só a autores baianos já publicados (o que se justifica, pois precisam circular, promover acesso a seus produtos), mas a gente como José Inácio Vieira de Melo, verdadeiro latifundiário especulativo da literatura baiana atual, que limita o aparecimento de jovens autores realmente interessantes (penso não tanto em mim mesmo, mas na experiência inovadora de James Martins no Pós-Lida, e nos experimentos em verso digital de Alvinho Tinto) – salvo os que passam por seu crivo que parece ter mais de genital do que estético. Inácio quer impor à Bahia uma poesia sertaneja que nada tem de baiana (sequer dialoga com Godofredo Filho), que talvez diga respeito a sua terra de origem, as Alagoas, e que em tudo parece uma afirmação de virilidade flácida como signo clínico de homossexualidade recalcada.
A FLICA, assim, além de cair de quatro para um mercado editorial que sequer baiano é (o que já seria uma mácula em termos de soberania econômica do estado), finge ser política para evitar politizar-se e acaba por sequer ser literária. Nada de novo para quem, como eu, já de há muito partiu para a Anti-Literatura (inclusive, decididamente, quando trabalhei na primeira edição da festa).
Uma mesa, contudo, me interessaria: este encontro diaspórico entre Makota Valdina e Pepetela; e há uma pessoa com quem eu gostaria de conviver intensamente, se lá estivesse: Cristovão Tezza (apesar da companhia desagradável do contudo bom poeta Fabrício Carpinejar), pelo seu enorme apreço aos concursos e prêmios literários que revelam novos talentos (o que revela uma linha de fuga sua da Literatura para a Anti-Literatura).
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