O resgate da masculinidade negada
Ontem, na exposição de orquídeas do Palacete das Artes (ex-Rodin), avisto um menino, bem bichinha mauricinho da Graça (o que é quase guri de playground de condomínio no Itaigara), que me atrai desde quando ele era mais feminino e jovem – e agora, adulto e másculo, mais ainda; desta vez há, contudo, um punctum de atratividade: um skate debaixo do braço e a face leventemente suada. Me aproximo:
– Você usa skate como transporte?
– Não, uso pra brincar.
– Mas você veio pra cá de skate…
– Sim, mas moro perto.
– Então, usa sim como transporte. Bicicleta também?
– Não como transporte…
– Você pode me ensinar a andar de skate?
– Eu não saberia ensinar.
Não é a primeira vez que peço skate-anjo a alguém (sempre negado, diga-se), embora desta isso foi pretexto e não texto – não me fiz de rogado, e antes de me retirar pedi que um garçon entregasse a ele um bilhete em que explicitava isso, deixava meu nome e telefone e oferecia-lhe bike-anjo.
Semanas atrás, num blind-date, encontro com um rapaz que não me atrai mas tem uma curiosidade que transversalmente me agrada: assumidamente homossexual, e até um tanto afeminado, é faixa-preta de karatê-dô e já deu aulas desta arte marcial, competiu em viagens interestaduais, etc. Por outro lado, ele não estranhou nem se admirou eu ter ido encontrá-lo de bicicleta e passearmos a pé de noite pela Graça enquanto conversávamos.
O que noto nesse anedotário é que, agora, há um processo (sutil e nada majoritário, mas em importante devir) de recuperação de uma masculinidade não bem perdida e sim negada, por parte de sujeitos homossexuais em centros de metrópoles – e que nada tem a ver com uma “emulação de macheza” das barbies e saradões de academia ou do culto do “não curto afeminados”. Se trata de que, apesar de se preferir rapazes, apesar de certa delicadeza feminil de gostos e tratos, se usará o espaço urbano molecamente, numa virilidade leve, flutuante e plural que não nega seu oposto nem lá está para obliterá-lo.
Em agonismo a este vetor está, claro, o reclaim-the-streets involuntário, por vezes irrefletido, das classes médias altas de centro de metrópole no Brasil pelo retorno do uso livre das ruas. Pode-se dizer que, lato senso, me incluo em ambos, embora não strictu senso: minha preferência pelo balet clássico é justamente quase machista num ambiente aviadado; remo olímpico, meu esporte de predileção, é muito mais feminino e gay do que se imagina (inclusive porque trabalha muito mais a musculatura da perna – não é canoagem, é uma bicicleta aquática praticamente); – e claro, meu interesse pela mobilidade desmotorizada está aquém disso (meu amor intenso, erótico, pelas cidades desde sempre) e além disso (não tenho fetiche esportivo com bicicletas), e some-se o fato de que, sintaticamente, sou um hetero que prefere os rapazes (mas não no sentido vulgar e proletário, e daí que minha erudição e sensibilidade estética são muito mais traços masculinos herdados de minha familia materna. O que há de viadagem em mim é muito mais uma grosseria libidinosa da Ribeira, herdada de meu pai, lida ordinariamente como masculinidade de povão: a xibietagem da pipoca de carnaval).
Do outro lado da moeda disso, outra anedota: depois da Bicicletada deste mês, encontro, por acaso, amigos não muito próximos no bar Mocambinho do Largo Dois de Julho. É aniversário de um deles: belíssimo, e com uma involuntária feminilidade por ser designer, é também muito hetero e às vezes quase troglodita macho brucutú (bem dentro do paradigma familista pequeno-burguês do eixo Pituba-Brotas). Este amigo, mais tarde, meio bebado reclama: “E você nem pegou na minha bunda hoje”:
– Eu nunca peguei na sua bunda, na verdade.
– Devia, é macia, pegue aí que eu gosto.
– É mesmo! Agora quero um beijo.
– Beijo na boca não dou não!
– Eu dou um bitoque – diz o irmão mais novo dele, muito mais macho (e machista), muito menos dado a dissonâncias sexuais. E me sapeca um selinho…
Para-além da sorte que tenho de os meios em que convivo, embora largamente heterossexuais, serem compostos por sujeitos que não vêem na heterossexualidade um destino natural da pulsão, mas um acaso fortuito da escolha embora recorrente, e de nestes a demonstração de afeto físico entre homens ser estimulada (o que aliás é comum em vários nichos da Reconvexa), e a agressividade física desestimulada (a intelectual é bem vista), estas são liberdades muito positivas (e não, eu não sou Queer – eu continuo achando os Queer uns rematados oligofrênicos). Embora, claro, um colega de trabalho que também mora no Dois de Julho tenha já me perguntado se o Mocambinho é gay porque “dá muito viado lá” – por óbvio que não: é um boteco de rua com uma cozinha esmerada, boa cerveja, ampla tolerância com a diversidade, sutil politização e interesse por fomentos culturais microfísicos.
Nenhum destes três impulsos são majoritários, mas são forças muito mais importantes de democratização material do Brasil (ao menos de Salvador e da Bahia – em Cachoeira o clima parece estar seguindo este rumo, também, e ainda alhures sertão adentro) do que se possa imaginar, gerando um ciclo virtuoso: fragilização das barreiras de gênero (vá lá!) ampliando a inventividade e intensidade do uso de espaços públicos, intensificação e reinvenção do uso dos espaços públicos fragilizando as barreiras (vá lá) de gênero.
O vaticínio que fiz, mais como manifesto, anos atrás por twitcam parece estar se realizando como profecia: os viados precisam pedalar (e andar de skate) tanto quanto os usuários de bicicleta precisam se aviadar (nem que seja pela via do CycleChic como vá-de-retro no ciclismo-como-esporte).