Topologia & poder
Diante deste episódio digno de pornochanchada de inspiração ionesquiana, passo a considerar que Jacques Wagner tornou-se (mais do que deveio) carlista. Que seu segundo mandato iria ser filocarlista, avisamos desde os preâmbulos da campanha de 2010 – e nem por isso deixamos de votar nele e fazer campanha, porque as opções eram parcas e porque o seu primeiro mandato trouxe ganhos populares substanciais, tanto na infraestrutura quanto na superestrutura, que de alguma forma continuariam, como continuaram, por inércia num segundo período de governo. Mas tudo tem limite!, e do filo-carlismo tático para um carlismo ideológico que não chega a ser principialista, sem passar pelo estratégico, vai um passo que representa um grande salto maoista-armstronguiano para trás (ou, quiçá, de bandinha).
Isso não quer dizer que retire os elogios que outrora fiz a ele e a seu governo, nem que me arrependa de ter votado, colaborado e apoiado diversas de suas ações. Primeiro, porque arrependimento é o crediário da culpa, o medo a conta-gotas e a esperança que deu bolor: na minha cozinha não entra; segundo porque ele era outro, eu era outro, a Bahia era outra – não gosto dessa idéia te(le)ológica do “agora as máscaras cairam e ele se revelou” – ninguém é mais que sua máscara, e ninguém chega a ser suas máscaras. Tudo é verdade: Édipo é ao mesmo tempo o rei probo e o parricida, o diligente investigador, o algoz e a vítima – tudo depende do recorte no tempo (recorte este aliás sempre mais ou menos arbitrário, sempre mais ou menos enganoso). Ainda em Sófocles (e tudo leva a crer que o Rei tebano era uma metáfora para o Péricles ateniense), aquele que liberta e institui a democracia é também alguém que pode ser tirano, e vice-versa.
Isto posto, fica mais claro agora porque Salvador elegeu Grampinho para prefeito: ACM Neto está a esquerda do que o PT bahiano está hoje. Obviamente, ninguém tinha consciência disso no último pleito – havia apenas o sentimento difuso de que Pelegrino era um carlismo de sinal trocado e pintado de vermelho. E Grampinho, justiça se faça, tem compreendido e agido na cidade enquanto realidade física, mais ou menos (até onde seu recorte ideológico e suas filiações econômicas deixam) dentro da Reforma Urbana Brasileira, inclusive questionando processos de depredacão urbanísticas realizadas por seu avô nas últimas quatro décadas. (Atenção, disléxicos que por acaso chegaram a me ler até aqui: não voto, nunca votei, nem votarei no PFL – e isso não me impede de reconhecer quando o adversário age de um modo que taticamente está a meu favor. Eu faço curva, o mundo não é uma linha reta senão uma assíntota).
Este processo, que na Bahia chega ao caricato da comédia maneirista e do teatro barroco (sempre!), parece ser nacional e quiçá mundial (o devir-drone e devir-bush do precoce Prêmio Nobel da Paz Barack Hussein Obama que seria senão parte disso?): a direita ficou à esquerda da esquerda da esquerda (isso mesmo: 3 vezes). O dentro é fora, encima é embaixo (e não como a harmonia, filo-heracliteana, da Regra de Hermes Trimegisto). Do surrealismo, que ainda considera o diptico sonho X realidade, chegamos ao nonsense escheriano: tudo reduzido a sua estrutura sintática, esvaziado de conteúdo, não existe mais mundo nem imundo, realidade nem ficção. A topografia, real porque imaginária, se torna topologia, imaginada porque do Real.
Isto que é impossível a dizer, ou grafar, se pode mostrar. Daí recorro a Escher. Suas figuras, sendo a Banda de Moebius a prínceps, realizam uma hiper-terceira-dimensão impossível na realidade tridimensional, e só representável no plano bidimensional: o desenho é mais real que a realidade possível. Não se trata portanto da anulação da profundidade, mas de dobrar o espaço sobre si mesmo através da inserção da quarta dimensão, o tempo – e aí criar (ilusão óptica de) profundidade onde não há, abrindo a possibilidade de muitos mundos que se cortam e atravessam sem, no entanto, se darem conta um do outro.
O excesso de dimensões faz com que estas se esfacelem (tempos simultâneos, espaços simultâneos), tudo é simetricamente assimétrico e assimetricamente simétrico – na prática, a hiper-vigilância norte-americana produz ela mesma seus vazamentos, inclusive por sobrecarga. A questão, no entanto, é lembrar da gravura Belvedere, de Escher: “nela, chama menos atenção a apreensão dos personagens que passeiam temendo que o teto desabe, uma vez que suas colunas estão truncadas; e sim que ninguém se aperceba de que o prisioneiro na verdade já está do lado de fora – aliás, nem mesmo ele o nota!’.