O Mito da Densidade (e a densidade do mito)
A crítica fundamental que Jane Jacobs fez, 50 anos atrás, ao urbanismo (idealista) fundando o que chamo de urbanologia (factual), parece não ter sido totalmente absorvida até hoje nem mesmo pelas esquerdas. Aceita-se a idéia de diversidade comercial do uso do solo, por exemplo, e da importância de imóveis antigos; ignora-se o desenho urbano e a necessidade de quadras curtas (há casos em que elas são dispensáveis e Jacobs não previu, é verdade) como se fosse uma futilidade burguesa; e segue-se usando conceitos opressores e sem significado, como densidade demográfica, quando a terrorista-urbana e dona-de-casa da Nova Inglaterra já havia demonstrado, quase num teorema, que se deve abdicar da relação população/área, que nada tem a dizer, e se adotar duas medições distintas e complementares: a densidade habitacional (moradias/lote) e a de superpopulação (pessoas/cômodos).
Nisso, ela involuntariamente vai apontar para o que Henri Lefebvre na mesma época começa a dizer: a relação biunívoca entre moradia e habitação (não são sinônimos!) – operando a esquizofrenia entre estes pares (moradia X habitação; densidade habitacional, e não demográfica X superpopulação) o esparsamento urbano rodoviarista ao gosto de Robert Moses.
Densidade demográfica seria assim aquilo que Yves Lacoste chamaria de conceito vazio, que serve a um só tempo como “geografia de curiosidades” alienante e como justificador da “geografia de guerra” dos Estados Maiores (bancos, empreiteiras, petrolíferas, etc.).
A distinção entre densidade demográfica (pessoas por área), densidade habitacional (moradias por distrito) e população domiciliar (pessoas por cômodo) pode parecer purismo conceitual. Não é. Jane Jacobs acaba por ser foucaultiana sem dar-se conta ao apontar que os conceitos não são apenas equívocos, como intencionalmente equívocos, sua confusão sendo o cavalo onde monta o poder.
Tomemos o exemplo de Salvador, nem que seja porque aí teremos um terceiro ou quarto teórico (que naquele momento não conhecia nem Lefebvre, nem Jacobs, nem Lacoste, nem era conhecido por estes tanto quanto estes não se conheciam entre si): Milton Santos. Diz-se, apressadamente, que Salvador é “a cidade mais densa do país”, como se isso fosse um problema. Só que:
- Densidade demográfica nada quer dizer, na prática. É possível ter cidades mais densas em população do que Salvador, como Buenos Aires, e muito mais eficientes e confortáveis – porque a densidade populacional aí é na verdade habitacional (muitas moradias por distrito) e em Salvador ela é superpopulacional-domiciliar (muita gente por cômodo, mas com poucos imóveis ocupados) como o preto-doutor já havia mostrado em sua tese de doutoramento em 1958;
- É possível ter cidades com menos densidade demográfica e mais excludentes e problemáticas que a Reconvexa, porque isso coincide com baixa densidade habitacional – Brasília é um exemplo, e seu esparsamento motorcrático não é mera coincidência;
- Contabiliza-se, no Rio de Janeiro (cuja área de maior densidade demográfica é também de maior densidade habitacional: o intenso e verticalizado bairro de Copacabana – e não os morros, vejam só!), a Floresta da Tijuca como área habitada. Aí, é mole pro Vasco…;
O que este terceiro item mostra é que o conceito de densidade demográfica é de tão larga escala que perde precisão. Salvador, por exemplo, tem densidade habitacional na Graça (um bairro nobre de centro, com boa mas não excessiva verticalização e relativamente poucos imóveis vazios, além de haver imóveis para diversas faixas de renda), superpopulação domiciliar sem densidade habitacional em seus bairros pobres de ocupação irregular mas centrais (que não chegam a ter três ou quatro andares por lote), e áreas centrais com total infraestrutura mas vazias de habitação (o bairro do Comércio).
Enquanto isso, os conceitos de densidade habitacional e de população domiciliar alcançam a vida real: quanto de potencial econômico um bairro tem pela presença de transeuntes e sua relação com o comércio local, e qual a qualidade de moradia a partir do quanto de privacidade ela gera (de novo, Jacobs: passou de 1,5 pessoas por cômodo, não há como ter conforto). Como se vê, são três medidas escalares distintas – tanto quanto velocidade, distância, tempo e aceleração não são sinônimos em cinemática (ou comprimento, área e volume em geometria)
A confusão entre densidade habitacional e densidade demográfica nunca foi inocente, e se Jacobs a denuncia é porque o argumento de que uma área era densa demograficamente (na prática, isso queria dizer superpopulosa internamente a seus domicílios, mas com poucos domicílios por área – isto é: cortiços) era usado para esparsar a cidade, abrir rodovias urbanas, mandar os imigrantes para a outra margem do Rio Hudson fora ilha de Manhattan – num momento da história econômica norte-america em tudo simular ao do Brasil atual. Isso, como ela demonstrou, não apenas não resolvia a superpopulação domiciliar, como a piorava: mais esparsado, a possibilidade de as famílias se dividirem e ocuparem outros imóveis adjacentes centrais era quase nenhuma. Fora todas as outras conseqüências de segurança pública, microeconomia e vida sócio-cultural que isso trazia.
Como então se resolve o problema da qualidade da moradia e da superpopulação domiciliar? Jane Jacobs é enfática: aumentando a densidade habitacional, uma vez que se alcançou uma clareza zen de que ela não se confunde com a ilusória densidade demográfica. Na prática, isso significa manter as famílias onde estão e levá-las a ter incremento de renda. O que faz um morador de favela quando ganha dinheiro mas gosta do bairro? Bate uma laje! Onde havia uma residência com mais de 1,5 pessoas/cômodo, passa a haver duas, talvez no total com até mais gente, mas seguramente com menos habitantes/quartos.
Em uma palavra, o fetiche da densidade demográfica (ignorando as grandezas reais da densidade habitacional e da população domiciliar) é uma das formas de justificar os Minhas Casas Minhas Dívidas e outras soluções de “dar moradia suprimindo a habitação” – para usar a brilhante fórmula de Lefebvre. A esquerda urbanística brasileira segue sendo pré-Jacobsiana não por nunca tê-la lido, e sim por nunca tê-la tomado radicalmente (a cidade é um problema grande demais para ficar nas mãos de arquitetos), e seguirem pensando com cabeça de engenheiro (e portanto encarando as cidades como máquinas, e não como organismos vivos). E aí advém uma serie de temores disparatados: por exemplo, de que a densidade habitacional aumenta demanda por transportes, quando Jacobs já demonstrara que na verdade diminui quando surge junto um aumento do uso comercial do solo, etc.; além do malogro de suas próprias críticas, que ficam assim gagas & tartamudas.
Densidade habitacional é antes uma solução do que um problema, bradou ela a vida toda; o problema é a superpopulação domiciliar e a falta de acesso a renda; e a densidade demográfica não é nem problema nem solução: é uma mistificação no sentido marxista do termo. Um retorno a Jane Jacobs se faz assim necessário tanto quanto Lacan propunha o eterno retorno a Freud: não por dogmatismo, e sim porque até mesmo quando se faz uma descoberta que concorde com estes, a descoberta é tomada na melhor das hipóteses como novidade curiosa (seja, no caso de Freud, pelos primatologistas ao descobrirem que nos símios a sexualidade não serve para reprodução; seja nos queer e suas bizarras teorias ignorando a fisiologia inclusive dos bonobos), e apenas muito raramente na sua potência subversiva.
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