Telemaquia
A Arte de ir bem longe para se chegar onde já se estava
(para Vera Lúcia Rocha, arquetipicamente)
Quando o road-movie surge como estética entre os anos 1960 e 1970, está claramente ligado a contracultura, sendo o efeito do beatnik no cinema, o rock’n roll de Woodstock 24 quadros-por-segundo. No limite, o road-movie quintessencial que é Easy Rider busca a ruptura radical, inclusive com a vida: descendo o Mississipi em motocicletas Wyatt e Billy saem dos Estados Unidos rico, mas agrário, e tomando o Deep South como go-west, vão para a paupérrima mas cosmopolita New Orleans em busca de um puteiro, para morrerem quase num suicídio involuntário. Até seus nomes são uma referência às avessas aos clássicos do conservadorismo (ou antes, da subversão a favor do conservadorismo) que são os westerns clássicos, se referindo aos heróis recorrentes Earp e The Kid, aliás adversários entre si.
Mais adiante, não deixou de contribuir com a liberação feminina (Thelma & Louise) e das inúmeras formas de viadagem, travestismo e transgênero no mais go-west dos países orientais, e no mais northern do sul do mundo, a Austrália (Priscila, a Rainha do Deserto).
O Brasil não deixou de usar do road-movie no seu chamado Cinema de Retomada, e talvez aí esteja sua superioridade ao período clássico da Atlântica/Cinédia/VeraCruz, ao cinema-novo e a pornô-chanchada: todos eram sedentários, Glauber Rocha inclusive, e eminentemente urbanos não no bom sentido (embora A Lira do Delírio seja um “road movie sem sair do lugar” ou um “road movie ao redor da esquina”); a retomada não: é uma viagem de interiorização material já de seu primeiro filme (não seria Carlota Joaquina um road-movie naval?!) tendo seu apogeu sem dúvida em Central do Brasil.
Central do Brasil que marca, paralelamente a outros roadies internacionais (Um Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami, e seguramente IceStorm, do excelente reacionário que é Ang Lee): em vez de uma busca de rupturas, o Road Movie passa a buscar conciliação; em vez de subversão, trata-se de uma estética conservadora no melhor sentido do termo – talvez no sentido do último Tolstoi, aliás proto-revolucionário, do último Eça de Queiroz, que se é neocolonial também é crítico do colonialismo luso de outrora e absorveu bem Karl Marx para além do moralismo flaubertiano ou zoliano que emulava anteriormente. Em tempo: cabe sempre lembrar o apreço que o mais conservador de todos os cineastas, Ang Lee, tem pelo road-movie: se IceStorm é o road-movie às avessas, sobre trilhos e a respeito da volta para casa num subúrbio onde a revolução sexual (ma)logra, também O Casamento de Muriel tem qualquer coisa de roadie; O Tigre & O Dragão, um road-movie de dimensões imperiais chinesas; Brokeback Mountain, apontado erradamente como western, só tem de western a inversão de valores que o road-movie promove no faroeste desde Sem Destino; e A Vida de Pi é um grande road-movie transatlântico, jesuíta e franciscano, quase uma hagiografia dos martírios em trânsito. Lee que aliás dirigiu o último (e mais reacionário) dos grandes westerns: Cavalgada Com O Diabo, lá onde John Ford acaba (re)encontrando D.W. Grifiths no que esse tem de pior (o racismo) e de melhor (a não-linearidade das idéias).
É neste panorama que o excelente, e recente, A Busca, brasileiríssimo, se insere: um filho único relegado a segundo plano, salvo como objeto de barganha, numa família de classe média alta paulistana, atravessar o litoral do sudeste (num devir-nordeste) para encontrar o avô, a quem não conhece mas tudo indica ser um grande designer de móveis modernistas (inclusive no que isso tem de retrô, de eras passadas); no seu encalço, vai seu pai, interpretado pelo maior ator do mundo em sua geração, meu conterrâneo Wagner Moura, despindo-se pouco a pouco das hábitos (de vestir e fazer) de profissional liberal paulistano para reencontrar, e mesmo (re)inventar, a paternidade – essa instituição conservadora, mas o irredutível da transmissão civilizatória.
Deve-se ainda lembrar que os road-movies têm sempre algo de Odisséia, fato que ficou bem ressaltado em Oh Brother Where Art Thou?, dos Irmãos Cohen – e é também neste sentido que James Joyce acaba por ser o Here-Comes-Everybody do século XX: toda viagem não é mais do que uma volta para casa, numa busca religiosa imanente e telúrica. A Busca não fica alheio a isso: a opção do nome do personagem principal ser Theo (Deus, mas também de alguma forma evoca Teófilo, o interlocutor suposto do Evangelho de São Lucas e, mais importante, do Livro dos Atos Apostólicos), da mãe chamar-se Branca (como uma Penélope incapaz de bordados, numa casa ao mesmo tempo já despossuída e inconclusamente em construção), e do menino que desaparece chamar-se Pedro – um Telêmaco identificado ao contrário com Ulysses: ao invés de ser ele que identifica o rosto do pai modificado (por se ter despido de ilusões), é Theo que busca no seu rastro tudo aquilo que vagamente possa identificar seu filho como quem de fato é, mas também como o em quem ele (ambos) virão a se transformar.