Pedra miudinha (lagedo tão grande) de Aruandaê
Longe de ser uma coincidência, na mesma semana em que o Estado de São Paulo começa a adotar as mal-ditas “internações compulsórias” para sacizeiros (não me venham dizer que é para usuários problemáticos de drogas, que ninguém vai internar a pulso a playboyzada cheiradora de pó), o Estado de Minas Gerais inaugura a primeira prisão privada do Brasil. Eu poderia mostrar aqui como tecnicamente internações são ineficientes e onerosas (sejam elas eletivas, de urgência, a mandato de um juiz, ou porque o sujeito assim o quis – como se “internação voluntária” fosse menos ruim que a “compulsória”), o quanto isso seria uma distorção econômica no minguado porém rigoroso orçamento do Sistema Único de Saúde, como se depriva do Direito à Cidade aqueles que não têm nenhum direito senão o direito à rua, etc. Tudo isso, no entanto, seria chover no molhado, repetir e fazer eco a gente que muito melhor do que eu pode dizer isso.
Interessa-me antes entender como e porque a dita militância anti-manicomial, e todos aqueles que estamos de alguma forma envolvidos desde sempre na Reforma Psiquiátrica Brasileira, não consegue (nunca conseguiu, sequer clinicamente) articular bem a questão do uso e abuso de drogas, líticas ou ilícitas; porque é que gaguejamos, onde é que esse ativismo fica tartamudo.
Primeiro, gostaria de lembrar aquilo que foi tema da tese de doutoramento, pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA), de Dalva Monteiro (e sobre o que discutiamos frequentemente quando trabalhávamos na Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador nos idos de 2005): com todos os avanços de redução nas duração e frequência de internações para portadores de transtornos mentais maiores (mormente psicoses) e de ampliação de serviços territóriais através dos Centros de Atenção Psicossocial, os rebentos tropicais de Franco Basaglia nada fizeram pelos neuróticos, e francamente abandonaram os ambulatórios (e com ele a única forma até hoje conhecida de reforma subjetiva e subversão do sujeito através de seu sintoma: as psicoterapias individuais, que seguem sendo no Brasil um luxo de classe).
Em tempo: não se trata de elogiar os ambulatórios psiquiátricos (ou de especialidades médicas com psiquiatras) como o SUS os herdou do INAMPS; antes, trata-se de admitir que eles são tão manicomiais quanto um hospício, que o adversário não é o muro e a camisa de força mas a concentração de poder na classe médica (e na idéia de um corpo sem sujeito). E não me venham dizer que CAPS são serviços ambulatoriais: não são, nem devem ser; seu caráter é muito mais similar a de um hospital-dia para pacientes crônicos.
Deste erro de princípio, a Reforma Psiquiátrica derivou outros: não só os pobres do Brasil ganharam o direito de ser doidos (o que é bom) mas jamais de desejarem, e aí as histéricas das classes sem nome não têm aonde ir se queixar a um profissional sobre sua vida subjetiva, salvo talvez com um pastor pentecostal, e só encontram assistência psicológica se fizerem uma crise conversiva tão forte que vão parar numa emergência de hospital-geral com suspeita de derrame encefálico (e meus seis anos trabalhando no Hospital Roberto Santos me mostram bem isso); não só a Reforma Psiquiátrica se limitou a autorizar a hoje Classe C a ser maluca, mas não a desejar, como inventou que seria bom internar doido em hospital-geral. Porque, claro, hospital-geral tem olarias, oficina de pintura e artesanato, e áreas abertas não é? Por óbvio que não, e no entanto se sabe que são as oficinas de terapia ocupacional em grupo, mais do que os neurolépticos, que ajudam a tirar da crise aguda de desorganização psíquica em internações breves. Assim, melhor do que destruir o manicômio, seria desconstruí-lo: manter tanto hospitais psiquiátricos quanto ambulatórios de saúde mental em funcionamento, mas sob uma outra lógica complementar aos CAPS – e não cair no canto da sereia do hospital-geral com leito psiquiátrico, uma vez que o problema é ser hospital, seja ele de que tipo for, essa máquina de alienar corpos.
E se para os Anti-Manicomiais o pobre pode ser esquizofrênico, mas nunca histérico, também a eles é vedado o direito de ser maconheiro e bebum. Não é tanto que os militantes da Reforma Psiquiátrica não tenham nunca se aproximado dos militantes pela descriminalização e legalização de entorpecentes – tanto se aproximaram que surgiram CAPS específicos para usuários problemáticos de álcool e outras drogas. Ocorre que esta aproximação não passa do prólogo: tanto quanto a dondoca rica pode ter um psicanalista, mas a doméstica não pode, o mauricinho pode tomar todos os doces do mundo numa balada e não ser taxado de doente, mas ái do neguinho de favela que fizer o mesmo!
O lado bom contudo da “Internação Compulsória” de crackeiros está no ponto em que isso pode dar a eles o mesmo status e potência de revolta que os psicóticos tiveram vinte anos atrás; uma vez que o Movimento Anti-Manicomial nunca tomou o drogadito como objeto de sua defesa, o próprio drogadito caiu na servidão voluntária e ao invés de buscar serviços de saúde de modo a aprender como conviver com sua droga e continuar a usá-la (como os doidos procuram para continuar delirando), buscam vitimizados e eivados de culpa como alguém que precisa parar de usar (ou ao menos usar outra, mais leve e “natural”). Agora, sendo tratados pior do que os malucos anteriormente às Reformas Psiquiátricas, pode ser que se revoltem. E digo pior porque, ao menos, quando o manicômio surgiu com Pinel havia a separação entre crime, religião e saúde: ninguém é doido por obra de deus ou do diabo, e sendo doido não pode jamais ser criminoso; para o drogadito, nada disso: ele é a um só tempo doente, criminoso e endemoniado.
À guisa de epílogo, gostaria de voltar ao texto de Hugo Albuquerque sobre as prisões privadas no Brasil, num ponto que ele parece ter ignorado e que eu chamaria de freyriano. Se em qualquer país do mundo as prisões privadas são algo que faz o crime compensar muito bem para quem pune, no Brasil isso se encavalaria na herança da escravidão; não apenas porque a maioria dos presos (e crackeiros) são negros e francamente ex-escravos, o que Hugo apontou bem. Penso mesmo na questão econômica da escravidão, e na patologia especulativa que surgiu como efeito colateral do longo processo de abolição: entre a Lei dos Sexagenários e a Áurea, o preço de venda do escravo no Brasil se tornou tão alto que era mais lucrativo ter escravos que nada produzissem, para revendê-los, do que produzir algo com eles. Não por acaso é a mesma lógica do latinfúndio moderno sem plantation e da especulação fundiária urbana: é mais lucrativo ter imóveis vazios, para vendê-los a preço altíssimo no futuro, do que ocupá-los presentemente com aluguéis constantes. Se ao invés de autonomizados, os ex-escravos foram abandonados a própria sorte (e seus proprietários foram indenizados, com ônus altíssimo para o então Império), prisões privadas e internações (compulsórias ou voluntariamente servis) são um processo de comoditização dos miseráveis, tornando essa massa humana lucrativa na sua posse a custo de não sê-lo em seu fazer, ao passo que aumentam seu abandono e reduzem sua já reduzida autonomia.
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