A Arte de Morgar

14/01/2013 at 10:49
“Vou ficar mais um pouquinho
para ver se acontece alguma coisa
pelo meio do caminho;
aperta o tempo pr’eu ficar devagarinho
com as coisas que eu gosto
e que sei que são efêmeras”
Tulipa Ruiz
 

Das atividades urbanas cruciais numa metrópole, talvez a que mais se empobreceu no Brasil seja a arte de morgar: deitar em algum local público e cochilar. Por um lado, por isso ser tido como coisa de morador de rua, lúmpens ou proletariado braçal. Por outro, pela escassez de bons espaços públicos cuja lógica de construção responda aos problemas dos trópicos (isto é: contenha a insolação, diminua o calor, etc) e não aos problemas de zonas temperadas (que precisam de áreas mais ensolaradas para serem morgáveis, de modo a combater o frio no outono e inverno).

Não obstante, o fato de a maior parte das metrópoles brasileiras ser litorânea, mormente praianas, garantiu que ao menos as praias sejam espaços de morgação. Contudo, a morgação de praia implica em uma dificuldade: tende a sujar mais, e portanto é preciso reservar horários longos ou dias inteiros para usufruir delas; dificilmente se vai a praia no intervalo do trabalho ou da escola – exceção louvável talvez ao Porto da Barra, em Salvador, por ficar no centro da metrópole (ainda assim, desprovido de choveirões; ou seja: só pode usá-lo para esta função de descompressão laboral quem mora no bairro…). De mais a mais, a morgação em praia não causa exatamente descansos, seja porque se vai lá justamente para se expor ao sol e para ter algum tipo de atividade física mais ou menos inconsciente (nadar, andar, etc.), quer pela altíssima sociabilização que o espaço causa (inclusive pela semi-nudez).

Para os descansos de sesta, é preciso áreas mais ou menos arborizada (mas com espaço entre as árvores, de modo que haja luminosidade e certo isolamento entre as pessoas ou grupos de pessoas), que no entanto não seja um parque; rodeada de estabelecimentos comerciais, mormente restaurantes, lanchonetes e cafés; que provoque uma diversidade de transito pedestre (babás com bebês, adolescentes indo pra escola, adultos jovens indo malhar, idosos lendo jornal, etc.) e portanto numa área densamente habitada. Em Salvador, é justamente a Pituba que tem uma dádiva dessas: a Praça Ana Lúcia Magalhães (que aliás é o nome da filha sapatão de ACM que se matou).

Aqui vai, então, um Manual Prático de Morgação Metropolitana:

  1. Vá para o trabalho de bicicleta. Isso vai lhe permitir buscar praças vivas um tanto mais distantes que sua distância pedestre. E ninguém sai no intervalo de almoço para morgar de ônibus ou de carro – não faria sentido;

  2. Na cesta, ou na mochila, leve uma toalha (pode ser pequena, de rosto), um livro (pequeno, de preferência com parágrafos curtos, frases idem); se não quiser pagar para almoçar, traga sanduíches de casa;

  3. Procure uma área em que haja outras pessoas morgando por várias razões: grupos de adolescentes tardios fumando maconha, meninos esperando a namorada, criançada jogando bola, moradores levando cachorro pra passear, etc;

  4. Escolha uma árvore, de preferência cuja sombra não impeça o nascimento de grama embaixo dela e que tenha um leve aclive em direção a suas raízes para que possa usar como sofá;

  5. Prefira praças, pequenos parques ou áreas em que o ruído de carros diminua muito e não seja substituido por barulho de comerciantes ambulantes, camelôs, etc;

  6. Tire o sapato e, se for homem, tire a camisa e arregace as bainhas da calça, dobrando-as para cima;

  7. Deite; leia; cochile; acorde; olhe de bobeira em volta; eventualmente paquere, ficcionalize a vida dos outros, etc;

  8. Levante uns 15 minutos depois (parecerá quase uma hora!), vista-se, recomponha-se, e volte pro trabalho.

Nas próximas vezes, vá convidando colegas e amigos para tal. Se for o caso, dê carona na garupa para aqueles que vão de carro ou ônibus para o serviço. Dê-se ao luxo de devir-pobre sem fazer voto de pobreza.