Das Dimensões da Imagem
Os argumentos que tenho contrários ao uso do dito “cinema 3-D” já são sabidos: encarecimento do ingresso, aumento da shoppingnização e multiplexazação das salas de cinema (num tempo em que foi o cinema de rua e de bairro que recuperou público), e o fato de que qualquer coisa que aconteça para fora da tela já não é cinema (e os filmes nesta estética, e no que se tem erradamente chamado de 4-D, talvez não passem de videogame e parque de diversões), e se se trata de aumentar a profundidade da mesma basta optar por bitola de 75mm com projeção de 48qps, como Jacques Tati já sabia e recentemente Peter Jackson deu-se conta ao iniciar suas filmagens de O Hobbit.
No entanto, há dois filmes para os quais isto não se aplica, e justamente porque problematização o conceito mesmo de terceira dimensão no cinema e nas artes visuais em geral: me refiro a Hugo, de Martin Scorcese, e a Cave Of Forgotten Dreams, documentário de Werner Herzog – este último sequer foi filmado em 3-D, e sim em câmeras de video de baixa tecnologia, capazes de adentrar na caverna Chauvet, e só depois convertido para este formato para exibição.
Scorcese conseguiu fazer uma filmagem em 3-D em que não apenas a dita “terceira dimensão” não é mera cosmética, mas estética (isto é: significante que toma parte no sintagma da metáfora), como mostra sua obsolência por antecedência. Trata-se de um filme de tese sobre o próprio cinema. Sua tese é a de que o cinema sempre foi tridimensional – não é outro motivo que leva a primeira plateia dos Irmãos Lumiére sairem correndo da tenda de circo onde assistiam Trem Chegando na Estação. A questão é que se a filmagem e o cinematógrafo nascem com os Lumiére, o cinema não nasce com eles: já estava antes no teatro de sombras do rococó e nos experimentos com imagens em cartão de Thomas Edson; e só depois, com Georges Meliés, que vai juntar estas anterioridades com a tecnologia do cinematógrafo, e usar sua ilusão a favor (abdicando, diga-se, radicalmente da idéia de “teatro filmado” tanto quanto da de “cinema documental”). Aliás, das cenas mais marcantes de Hugo é justamente quando alguns croquis de Meliés caem de uma caixa e voam em cena: os croquis parecem sair da tela, graças ao 3-D, mas os próprios desenhos dos croquis também se mexem e ganham terceira dimensão fora da tela: folha de papel e esboços, conteúdo e continente, suporte e significado, ambos transcendem ao cinema por total imanência ao mesmo.
Com Herzog, trata-se do contrário, a começar por ser um documentário sobre descobertas de arte rupestre numa caverna alemã – de modo que o efeito tridimensional não afeta jamais o principal objeto do filme: as pinturas paleolíticas seguem chapadas contra a pedra. Ou seguiriam, não fosse o fato de que nelas já se nota recursos de mais de 30mil anos de idade de causar a ilusão de trimidensionalidade: bisões com patas a mais, rinocerontes com halos de chifre aludindo movimento, leões e cavalos superpostos. Recursos, diga-se, que são próprios da pintura anterior a Rafael Sanzio. Penso aí com João Cabral de Melo Neto em seu belíssimo ensaio sobre Joan Miró (que acaba por ser um ensaio sobre a arte rupestre): a própria ideal ocidental e racionalista de que antes de Rafael não havia tridimensionalidade na pintura é profundamente colonialista. O perspectivismo, embora um ganho técnico sem precedente, não é a única forma de dar profundidade ao quadro (os panos em curva, os espelhos, e os vários átrios, em Velasquéz, a luz interna de La Tour, e externa de Vemeer e todos os góticos tardios do norte da Europa, inclusive Lucas Cranach em sua belíssima Natividade, posteriores a Rafael, criam dimensões a mais na tela sem recorrer a pontos de fuga). E supor que não havia formas de tridimensionalidade antes de Rafael (a repetição superposta de personagens, própria de Gioto mas que aparece também no já rafaelita Boticcelli) ou fora dele (toda a pintura imperial chinesa e japonesa, e as aquarelas zen, não são tridimensionais? – e aliás, não estão muito próximas da arte rupestre do paleolítico? A ceramica marajoara e o horror caduweo à simetria também não?). Herzog nos está a dizer que não apenas um cinema 3-D é redundante em relação ao cinema, como é tão redundante em relação às artes pictóricas quanto foi o advento do Ponto de Fuga na escola fiorentina do século XV.
De toda sorte, há ainda mais: tanto Herzog quanto Scorcese acabam por impigir ao cinema 3-D, e mesmo 4-D, uma teoria da recepção. Se o cinema, antes de virar arte, era um entretenimento circense, é justo isso que estas emulações de shopping-center fazem – mas não admite que fazem: Meliés foi um circense, todo o Realismo Italiano de que Scorcese é caudatário foi saltimbanco indo de vila em vila filmar e exibir filmes no fim do fascismo, e os governos da França e Alemanha querem fazer uma réplica da Caverna Chauvet para visitação pública – uma espécie, digamos, de zoológico de pedra (com direito a odores similares ao das cavernas reais, tanto quanto o dito cinema 4-D treme e espele odores de acordo com o filme exibido).
E com isso, apontam ainda para o equívoco maior: odores, tremores e temperaturas não formam uma quarta dimensão. É justamente o cinema a primeira arte visual a incorporar integralmente a quarta-dimensão do espaço que Einstein estava para descobrir como tal, o Tempo; e é também a primeira arte cênica a fazê-lo, uma vez que o teatro não pode se passar senão num espaço e tempo limitado mesmo se rompe com o modelo aristotélico – o que nos leva a questionar se a revolução brechtiana não foi mais fruto do surgimento do cinema do que da marxização teórica do teatro; se ela não foi, digamos, mais um efeito involuntário de uma nova tecnologia concorrente, do que o efeito voluntário de uma inflexão ideológica.
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