Engasga-gatos, gororobas e requentados II
Em março deste ano, escrevi para o observatório do Festival Viva Dança uma crítica a montagem de Hamlet Machine pelo Taanteatre de São Paulo. Há algumas semanas, eles escreveram no mesmo espaço a réplica. Creio que vale ler, copiado abaixo, a polêmica.
Mais do que mera crítica de dança, tanto a minha opinião quanto a resposta deles revela uma divisão política, ideológica e programática que vem acontecendo no Brasil pós-Lula, ou Dilmista, entre abaixo e acima do Trópico de Capricórnio.
Tinta não devia falar
Lucas Jerzy Portela
“O mínimo que se espera de uma escultura é que ela não se mova.” Salvador Dalí (ou Ávida Dolars, segundo André Breton), a respeito dos móbiles
Era com essa tirada sobre o fato de que tinta não emite som (e coreógrafo é um pintor) que Gilmar, bailarino da velha guarda do BTCA, interrompia ensaios quando fazia montagem para as escolas de balé da cidade do Salvador. “Não consigo pensar com tanta tinta falando, e vocês são mera tinta” – dizia, numa atitude soto-zen, para meninas bem-nascidas de 12 anos de idade, às vezes.
Este é o primeiro problema de Hamlet Máquina fisted, e de tudo isso que se propõe a esse hibridismo metido a neutro de Fourier mas que não passa de impotência, e que se chamou de “teatro coreográfico” ou “dança-teatro”. Tenho o princípio de que tudo que requer adjetivos, é ruim: o substantivo deveria ser suficiente para descrever uma obra – vale até para cardápio de restaurantes e cafés. Se uma salada é com “alfaces crocantes” e não meramente “alface”, não peça! Ou bem se é bailarino, e seu corpo está submetido aos desígnios de um coreógrafo (coisa que até Pina Bausch, de quem não gosto, fazia e sabia fazer), ou bem se é ator e se fala e fala.
Não que o texto de Heiner Muller não se preste a virar coreografia. Talvez seja o que mais se presta: curto, impreciso, e com indicações quase que meramente vetoriais, tem mais cara de marcação coreográfica do que de peça de teatro.
Só que os problemas da montagem dos paulistanos da Taanteatre apenas começam aí. Para dar cara de teatro, inxertam um palavrório até correto do ponto de vista do conteúdo, que no entanto sintaticamente vira um contra-tudo-isso-que-está-aí com odor de massa cheirosa do movimento cansei em marcha contra corrupção (quem aliás, além de mim – e mesmo assim só pra chocar – seria a favor dela?).
Não se pense com isso que a montagem em questão é tucana, ou de direita – sequer da direita lulista. É pior: trata-se de um discurso pós-lulista neurótico e cheio de impasses, adubado no ressentimento antidilmista. Claro que eu acho a Geisel de Calçolão a ocupar o Alvorada uma hecatombe, e claro que eu votei nela. Mas como nunca fui petista (eu sou de esquerda, mas sou antes não-idiota), não tenho nada do que me decepcionar (embora tenha muito a combater em Dilma Roussef, e tenho feito desde antes de ela se eleger): não é nada diferente do que eu esperasse, nada que chegue a surpreender ou pasmar.
Essa decepção sem dialética, ao tentar se colocar mais a esquerda do que a esquerda hoje no poder, faz um caminho em ferradura e começa a cheirar a a antijanguismo primitivo. Sorte nossa, tais impasses parecem se colocar para a população, políticos (e artistas) de São Paulo para baixo. De São Paulo pra cima, onde fizemos e fazemos a Reforma Cultural Brasileira, há decepção e queixas, mas nada que nos paralise no gozo da má-falação.
Pra não dizer que tudo está perdido (e aliás, o fisted do título é pura propaganda enganosa…), faço dois ou três elogios. Mais da metade do elenco, embora não sejam bailarinos de formação e não tenham corpo para tal, dominam bem a técnica clássica: pés firmes e altos, boa abertura de pernas, etc – e usam tais recurssos quando precisam: bons, embora raros, courrous e developés. Outro elogio é que, se por um lado resvalam nesse pós-lulismo que não sabe o que fazer com os pobres que agora descobriram que desejam, também não parte pra esse deleuzianismo difuso que tem por aí do quanto pior melhor, de que toda desterritorialização é boa porque faz rizoma, etc – bem ao contrário: tecem longo, e agudo e desabrido sarcasmo escrachado sobre essas crias anencéfalas dos Guatari que nos enxem o saco.
A tinta canta
Wolfgang Pannek*
Resposta ao artigo de Lucas Jerzy Portela (leia aqui)
Com algum atraso, encontrei hoje e por acaso o texto Tinta não devia falar de Lucas Jerzy Portela, veiculado no Observatório do website do VIVADANÇA Festival Internacional. Portela critica o espetáculoMáquina Hamlet Fisted, apresentado pela Taanteatro Companhia por ocasião da 6a edição do festival, em Salvador.
Repleto de demonstrações de (des)gosto, mas carente de sustentação argumentativa, o texto de Portela merece atenção crítica, não somente em função de sua exposição superficial e de seu regionalismo conservador, mas principalmente por causa dos equívocos de seu discurso em relação às artes (cênicas) contemporâneas em geral.
Portela critica, sobretudo:
1. um “hibridismo metido a neutro” que não passa “de impotência”;
2. a tematização cênica da corrupção por a) ser um aspecto da realidade brasileira que não surpreende e por b) ser expressa por meio de “um palavrório até correto” mas que “vira um contra-tudo-isso-que-está-aí”;
3. um “discurso pós-lulista neurótico e cheio de impasses, “adubado no ressentimento antidilmista” que se pretende “mais a esquerda do que a esquerda hoje no poder”;
e observa
4. que “tais impasses parecem se colocar para a população, políticos (e artistas) de São Paulo para baixo”.
Sobre a primeira crítica
A primeira crítica se refere ao complexo ‘pureza versus hibridismo de linguagens’. Para desqualificar o “hibridismo”, invoca a autoridade do pintor Salvador Dalí e do coreógrafo baiano Gilmar. De acordo com Portela, Dalí, ao observar móbiles, disse: “O mínimo que se espera de uma escultura é que ela não se mova.” Desconheço o contexto dessa afirmação mas por definição móbiles são móveis. Ou ‘móbile’ não se encaixava na definição de ‘escultura’ de Dalí, ou Dalí se referia a uma determinada expectativa diante do conceito “escultura”. De fato, Dalí criou esculturas móveis, corpos dotados de gavetas e manequins-aquários.
A segunda autoridade citada, o coreógrafo Gilmar, interrompia os ensaios de “meninas bem nascidas”, “quando fazia montagem para as escolas de balé da cidade do Salvador”, dizendo: “não consigo pensar com tanta tinta falando, e vocês são mera tinta”. O que Gilmar queria dizer com “mera tinta”? Será que via o bailarino – assim como Portela – como instrumento ou material (tinta) “submetido aos desígnios de um coreógrafo”?
Portela utiliza o termo “tinta” de duas maneiras distintas:
a) Em “tinta não devia falar”, tinta é uma linguagem que não deve assumir a função da fala.
b) Em “meninas bem nascidas” como “mera tinta”, o termo remete à função do bailarino como instrumento dentro de uma visão hierárquica do trabalho coreográfico.
Será que uma definição de escultura que não acompanhou a transformação dessa modalidade artística desde o princípio do século 20 e que não contempla obras como os Penetráveis, de Oiticica, ou as máquinas de Tingely, fornece um argumento consistente contra o hibridismo?
Será que problemas cognitivos como a “dificuldade de pensar” atribuídos a Gilmar justificam uma divisão rígida entre criadores e executores no campo das artes cênicas? Portela não cria argumentos, apenas cita opiniões cuja verdade estaria fundada na suposta autoridade de dois artistas. A exigência de separação e pureza – de linguagens e funções – nas artes (mas também nas ciências, na religião, na filosofia e nas condutas sociais em geral) é frequentemente vinculada a moralismos autoritários. O discurso imperativo de Portela demonstra isso com clareza: “a tinta não devia falar”, “ou bem se é bailarino (…) ou bem se é ator”. Portela pressupõe um ser e dever artístico, sem explicar em que esse ser consiste e porque ele determina um dever, isto é, o da separação de linguagens. Confia na autoevidência de suas crenças. Sua insistência na distinção nítida entre teatro e dança ignora a polifonia de códigos intrínseca às artes cênicas e revela um tradicionalismo conservador preso a ideais modernistas ultrapassados. Recordo Artur Rimbaud, sua poética associava tons musicais à cores e vogais, fenômeno hoje estudado como sinestesia pela neuro-psicologia: A tinta não somente fala, a tinta canta.
Sobre a segunda crítica
É preciso esclarecer um equivoco: Portela apresenta Máquina Hamlet Fisted (ele escreve erroneamente “Hamlet Máquina Fisted“) como se fosse a encenação de Hamletmaschine de Heiner Müller. Acontece que o espetáculo apresentado no VIVADANÇA não é da autoria de Müller, mas de Wolfgang Pannek. A peça de Pannek, escrita em 2011, dialoga a partir de ângulos atuais com a peça de Müller, escrita em 1977. Ao fazer isso, não traz um “palavrório”, mas textos cuidadosamente elaborados. O tema maior deMáquina Hamlet Fisted – como de Hamletmaschine, como de Hamlet – é o tema do poder e do relacionamento humano com o poder. Em Máquina Hamlet Fisted, essa questão se desdobra sob os pontos de vista político-histórico, sexual e artístico. Somente na cena de abertura, a peça discute explicitamente a corrupção.
Concordo com Portela nesse ponto: corrupção não é novidade no cenário sociopolítico brasileiro. A corrupção já não surpreende a ninguém. E é justamente esse escândalo da normalidade da corrupção que mobiliza Hamlet e que a peça faz questão de mostrar: a corrupção está no cerne da colonização das Américas. A falta de surpresa, de indignação, de disposição de confronto da corrupção e de seus agentes constitui o caso normal do cenário macropolítico e das microrrelações sociais, em todas as esferas, não somente entre os “bem nascidos”, mas também entre “os pobres que agora descobriram que desejam”.
À pergunta retórica de Portela “quem aliás é favor da corrupção?”, Hamlet poderia responder: a esmagadora maioria! Ao mostrar conivência com as manobras e mentiras de seus governantes, colegas, familiares e de si mesma, ao aceitar governos corruptos por talvez sentir que atuaria de forma igualmente corrupta e oportunista se estivesse no lugar dos governantes.
Tudo isso deve provar que Máquina Hamlet Fisted, de maneira alguma, é um espetáculo “neutro“, como alega Portela. Insisto ainda sobre o seguinte: a suposta obviedade e recorrência de importantes fatos sociais – corrupção, assimetria social, discriminações, caos urbano, entre outros – não torna menos urgente sua abordagem artística.
Sobre a terceira e quarta crítica
Os motivos elencados demonstram por que a Taanteatro Companhia não pode aceitar uma abordagem simplória da hibridez de linguagem e do atravessamento mútuo de códigos nas artes cênicas contemporâneas. Da mesma maneira não pode aceitar que as indagações expostas em Máquina Hamlet Fisted sejam reduzidas à expressão de neuroses e ressentimento de seu autor ou da população que vive “de São Paulo para baixo”.
Desqualificar um argumento ou uma obra, atribuindo características patológicas ou moralmente questionáveis ao seu autor, é uma estratégia pobre e conhecida que figura na lógica como argumento ad hominem. Na ausência de bons argumentos, o crítico põe em dúvida a integridade mental ou moral do autor da obra criticada.
Os questionamentos explicitados na peça não se resumem nem excluem o governo atual. A peça debate uma tradição de poder sem reduzir o problema a simplificações dicotômicas entre partidos, entre pessoas “bem nascidas” e “pobres que agora descobriram que desejam” ou por meio de divisões demográficas ou de valor cultural entre ‘pessoas acima e abaixo de São Paulo’.
O texto apressado e inconsistente de Lucas Jerzy Portela, demonstra, por meu ponto de vista, não um problema do hibridismo nas artes atuais, nem na criação teatro-coreográfica da Taanteatro Companhia e do espetáculo Máquina Hamlet Fisted, mas reflete acima de tudo os preconceitos, ressentimentos e as concepções estéticas datadas de seu autor, além de sublinhar a crise moral e pragmática da atual esquerda brasileira:
“(…) sou de esquerda, mas sou antes não-idiota, não tenho nada do que me decepcionar (embora tenha muito a combater em Dilma Roussef, e tenho feito desde antes de ela se eleger): não é nada diferente do que eu esperasse, nada que chegue a surpreender ou pasmar.” diz Portela
Se o espetáculo Máquina Hamlet Fisted foi capaz de evidenciar esse impasse, já contribuiu para um pequeno e substancial avanço.
(*) Wolfgang Pannek é codiretor da Taanteatro Companhia. Autor e diretor do espetáculo Máquina Hamlet Fisted.
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