Traduções, reduções, abduções
É sabido que dos exercícios fundamentais para se dominar a forma do verso é traduzir poemas contemporâneos ou da tradição. São lendárias as diversas traduções d’O Corvo, de Poe, por cada um dos heterônimos de Fernando Pessoa – a exceção de Alberto Caeiro, porém incluso o ortônimo ele-mesmo; idem para as de Machado de Assis, e vale lembrar que em seu livro de poemas eróticos Espumas Fluctuantes, Castro Alves inclui traduções suas para Byron.
De outro lado, já sabem que venho publicando aqui produção ficcional, mormente em verso, a medida que ganham concursos literários e perdem, assim, o ineditismo. É hora pois de mostrar meus exercícios íntimos, a cozinha onde se confita o poema: minhas traduções.
Como se sabe, meu poeta preferido para tais treinos é e.e.cummings – não apenas pelo seu gênio particular, pelo seu nomadismo em pleno crack da bolsa de 1929, por seu aristocratismo negro, e por sua opção por uma poesia que sendo arquitetônica não é nem art-nouveau nem modernista-funcional, mas bauhaus, feita de destroços e ruínas. É principalmente pelas dificuldades particulares que ele impõe através de sua técnica, mesmo quando faz prosa (nos excelentes prefácios a É 5 e Novos Poemas) ou soneto (forma que não domino, nem pretendo, e não admiro muito – mas cummings dominava e nele gosto muito).
Não vou de cummings desta vez, contudo. Optei por uma poeta-de-poetas, admirada tanto por João Cabral de Melo Neto (apesar de ela ser de direita, ufanista e ligada ao Partido Republicano yankee) que a usa duas vezes como epigrafe de livros seus (uma está no poema abaixo, outra é de seu O Herói, “onde houver afinidade pessoal, iremos / lá onde a terra é acre”, que aparece no cabralino tardio Agrestes). Refiro-me, claro, a Marianne Moore.
Com isso aproveito também para avisar que, como voltei a ter apenas um vículo de emprego com o estado desde janeiro (nos 4 anos anteriores, período em que este blog surgiu, tive dois), volto este ano a dar aulas particulares, quer de reforço escolar nas disciplinas de Redação, Literatura e História, quer de produção textual – além de fazer traduções não-juramentadas inglês-português e português-inglês e revisão gramatical de trabalhos acadêmicos. São atividades que realizo remuneradamente desde que me entendo como intelectual – antes da maioridade legal, por exemplo, e que só deixei de exercer nos últimos quatro anos – apesar da insistência de novos e antigos alunos, para os quais infelizmente não tinha tempo. Agora volto a ter, e o telefone para contato a quem interessar é (71) 8841-2257.
Enfim, o poema chamado Poesia (Poetry) – logo em seguida, sua versão no idioma original.
. Poesia
Eu, também, desgosto: há coisas que são importantes para-além de toda
essa firula.
Lendo-a, contudo, com um perfeito desprezo por ela, descobre-se nela
afinal, um lugar para o genuíno.
Mãos que podem alcançar, olhos
que podem dilatar, cabelos que podem arrepiar
se necessário, essas coisas são importantes não porque
uma retumbante interpretação pode ser posta sobre elas mas porque
elas são
úteis. Quando elas tornam-se tão derivativas assim para tornarem-se
ininteligíveis,
a mesma coisa pode ser dita para todos nós, que nós
não admiramos aquilo
que não podemos entender: o morcego
pendurado ponta-cabeça ou em busca de algo para
comer, elefantes empurrando, um cavalo selvagem a galope, um incansável
lobo sob
uma árvore, o imóvel crítico fremendo sua pele como um cavalo
que sente uma mosca, o torcedor de fute-
bol, o estatístico –
nem é válido
discriminar aqueles “documentos de negócios e livros
didáticos”; todos estes fenômenos são importantes. Deve-se fazer uma
distinção
contudo: quando puxado à proeminência por meio poetas, o resultado
não é poesia,
nem até que poetas entre nós possam ser
“literatos de
imaginação” – acima da
insolência e da trivialidade e possam apresentar
para inspeção, “jardins imaginários com sapos reais neles”,
só nos resta tê-
la. Nesse ínterim, se demandares em uma mão,
a matéria bruta da poesia
em toda sua crueza e
aquilo que é por outra mão
genuína, estais interessado em poesia.
. Poetry
I, too, dislike it: there are things that are important beyond
all this fiddle.
Reading it, however, with a perfect contempt for it, one
discovers in
it after all, a place for the genuine.
Hands that can grasp, eyes
that can dilate, hair that can rise
if it must, these things are important not because a
high-sounding interpretation can be put upon them but because
they are
useful. When they become so derivative as to become
unintelligible,
the same thing may be said for all of us, that we
do not admire what
we cannot understand: the bat
holding on upside down or in quest of something to
eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tireless
wolf under
a tree, the immovable critic twitching his skin like a horse
that feels a flea, the base-
ball fan, the statistician--
nor is it valid
to discriminate against "business documents and
school-books"; all these phenomena are important. One must make
a distinction
however: when dragged into prominence by half poets, the
result is not poetry,
nor till the poets among us can be
"literalists of
the imagination"--above
insolence and triviality and can present
for inspection, "imaginary gardens with real toads in them,"
shall we have
it. In the meantime, if you demand on the one hand,
the raw material of poetry in
all its rawness and
that which is on the other hand
genuine, you are interested in poetry.