Greves, à direita
Criou-se o mito na esquerda brasileira, mito esse que não deixa de ser trabalhista e populista (é dizer: janguista), de que toda e qualquer greve é canhota e legítima – como se o proletariado não pudesse dividir-se e atacar-se a si mesmo, teleguiado pelo capital (é uma esquerda que nunca assistiu um Brecht na vida), como se o fato de ser da classe trabalhadora impedisse os sujeitos de serem neuróticos – como se, principalmente, a derrubada de Salvador Allende no Chile não tivesse começado com uma greve de caminhoneiros.
O motim da Polícia Militar da Bahia em janeiro deste ano poderia ter servido para iniciar a desconstrução deste idealismo, e talvez o tenha; por outro lado, o vale-tudo que se viu nestes episódios parece ter aberto precedentes para que também grevistas civis se arroguem o direito de estar fora ou acima da lei.
Refiro-me mais especificamente a greve dos motoristas de ônibus em Salvador na semana passada. Primeiro, os preâmbulos: já na segunda-feira (a greve só se iniciou na quarta) parte da cidade foi paralisada por protestos desta categoria. Protestavam por salários? Não, por questões internas de divergências entre facções de seu sindicato. E não é a primeira vez que querelas internas do sindicato dos rodoviários redunda em problemas para a cidade como um todo – que, convenhamos, nada tem a ver com isso. Que se faça manifestações que paralisem a metrópole, desde que a causa seja de interesse comum e supra-classe, é louvável; fazer isso por problemas internos de um grupo profissional é infantilismo.
Começada a greve na quarta-feira, toda frota parou – a arrepio de decisões judiciais e do bom-senso a partir da Constituição que garantiria o funcionamento mínimo de 30% dos serviços públicos em greve (e ônibus urbano é serviço público, ainda que prestado por empresas privadas). As reivindicações, quase todas meramente salariais, não visam a melhoria do transporte para a população. Ao contrário: desta forma os motoristas de ônibus se aliam e se identificam a seus patrões, os Senhores Feudais da SETPS, e podem forçar um aumento da passagem de ônibus (aqui, cabe um adendo: sempre disse que o problema não é o preço da passagem em si, que pode sim ser maior do que é, mas a licitação das linhas, o ordenamento das mesmas e a bilhetagem única, universal e plena através de cartão eletrônico). Nenhuma reivindicação, por exemplo sobre a retirada dos assassinos “curralzinhos”, que quintuplicam o tempo de embarque dos passageiros, tornando a jornada de trabalho dos motoristas e cobradores bem mais stressante, e tratando o cliente (porque somos clientes, e não usuários) equanimimente como contraventores em potencial. Pra não dizer que nenhuma pauta dos rodoviários interessa a população em geral, a questão da redução de carga horária, que eles demandam, de fato redundaria em mais segurança e qualidade para todos – até para quem não usa ônibus.
Outra greve é a dos professores da rede estadual de ensino. Sim, o Governador Wagner está mais do que errado em não ter cumprido o acordado (e em manter, neste segundo mandato, uma assessoria de imprensa de fazer vergonha!). Só que a greve foi julgada ilegal, o que é uma decisão do Poder Judiciário. Diante disso, o que se deve fazer é cumpri-la – e aproveitar o tempo sabático para planejar ações futuras. “Isso esvaziaria o movimento”, bradarão alguns – se assim fosse a greve da Secretaria de Saúde há pouco mais de um ano atrás não teria dado certo até onde podia (eu mesmo já fui reenquadrado para cima na carreira, e esta era uma das reivindicações), nem teria a força que já começa a ter para este ano. Aliás, um dos marcos da greve da Saúde foi justamente que as reivindicações não eram salariais. O Governo retrucava que os profissionais são bem-pagos, e o sindicato respondia: “São mesmo!, a questão não é essa: é, sim, as condições de trabalho e a promoção na carreira por mérito”. Ou seja: vindo de uma classe em geral da elite, se fez uma greve em prol da população, e não contra ela – sem reduzir um único profissional dos serviços de emergência, diga-se de passagem.
Quando sugiro que os professores deveriam voltar às aulas não quer dizer subserviência ao Governo. Bem ao contrário, era possível voltar às escolas mas se negar a dar o conteúdo programático do ano – em seu lugar, trabalhar em sala de aula as questões relacionadas a greve e estimular a tomada de posição dos estudantes, o que seria uma força de pressão a mais contra o Estado. Só que para isso é preciso se estar com disposição para também mudar de idéia, ser questionado dialéticamente. Por exemplo, a Secretaria de Educação da Bahia não tem um único psicólogo escola nos seus quadros – Pernambuco, há 3 anos, fez concurso para quase 40 destas vagas. Isso não está na pauta de reivindicações, que se torna meramente salarista (mais do que salarial), sem propor uma virgula de mudança no próprio conceito de escola e de ensino. Ou como já disse alhures: insiste demais na importância de sua ausência, ao invés de usar sua ausência de importância.
Voltando um pouco atrás, o mesmo valeria para os rodoviários. Não se trata meramente de “ao invés de fazer greve, liberar a catraca”, como a pequeno-burguesia carrodependente tanto fala e que por outro lado os metroviários de Buenos Aires fizeram este ano. Isto sim, e mais: dialogar com cada passageiro sobre as questões de mobilidade, em que circunstâncias o ônibus é útil ou não, como preço da passagem pode ser maior e ainda assim pesar menos no bolso do proletariado. Enfim, desalienar-se e propor-se a desalienar o outro.
Contudo, para tudo isso, seria necessário que a servidão não fosse voluntária – e ela o é tanto quanto o masoquismo é fundamental na economia psíquica.
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