Cicloviarismo motorizante

10/05/2012 at 7:39

Vai aqui, a título de epígrafe ou mote, uma micro-crônica do que me aconteceu ontem. Fui atropelado (como pedestres, até porque não existe atropelo sobre uma bicicleta e sim abalroamento) no Canela. O Canela é praticamente uma zona de 30km/h, quer porque sua densidade habitacional e diversidade de usos faz com que sua vida pedestre seja rica, quer porque sua infraestrutura pedestre é acima da média para Salvador: calçadas relativamente largas e não tão esburacadas, quadras curtas com faixa de pedestre em cada esquina (chegando a ser 4 faixas por cruzamos) e faixas em meio de quadra se a quadra for longa, e raramente se vê automóvel estacionado sobre a calçada – fato raro, e digno de alvíssaras, em Salvador.

Não tive maiores intercorrências porque, justamente, é impossível um veículo estar a mais de 30km/h nesta região. O ocorrido foi sobre a faixa de pedestres que há quase em frente a Reitoria da UFBA, mas antes do semáforo. Eu já estava no meio dela, o motorista acelerou, eu involuntariamente me virei de frente para ele para pedir que freiasse, o que geralmente funciona; neste caso funcionou com retardo, cheguei a cair no chão e ter um ferimento em face. Mas nada que me impedisse de, ato contínuo, levantar e espancar a chaparia do seu capô e xingá-lo de obeso mórbido, para lhe dar algumas mossas a mais de prejuízo (mais detalhes podem ser lidos aqui). Como a área é muito pedestre, rapidamente desconhecidos me socorreram e apoiaram. Não dei queixa pra não estragar mais meu dia – ainda tinha de ir até a Faculdade de Arquitetura devolver um livro.

Que moral quero manter, a partir deste episódio, para o texto que se segue? Comumente, se diz que estes problemas de transito (transito somos todos, não só os motorizados) é culpa do Estado. Neste caso, não: se justamente não houvesse dispositivos que tornam o fluxo de automóveis na área lento e levemente caótico, os danos e riscos seriam maiores. Alguma coisa de infraestrutura no Canela é equívoca ou pode ser melhorada, mas não é este o cerne. O cerne está na mentalidade, na superestrutura, dos motoristas – que mesmo numa área de centro de cidade, lentificada e cheia de idoso, hospital, faculdade e escola, não se dão conta de que acelerar de 20km/h para 30km/h é ridículo até para o propósito que têm – quanto mais quando há um semáforo 10m adiante…

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Recentemente, Camilo Fróes e Carol Morena, casal bastante crucial para a Reforma Cultural Bahia dos últimos anos, começaram a usar bicicleta como transporte; e Camilo, particularmente, a escrever um blog despretencioso a respeito, que por isso mesmo tem o mérito de atrair novos usuários – o que é sempre importante.

Esta semana, contudo, postou um video retratando seu uso. Dispus, lá, diversos comentários analisando quase quadro a quadro onde estão os erros cartográficos (sim, erros, no sentido de erros táticos – se a geografia serve, antes, para fazer guerra mesmo em tempos de paz, é disso que se trata e não de “opção e gosto”). Após longa, e produtiva, resposta mutua, ele se irritou e apagou todos os comentários.

Por um lado, é peculiar sua dificuldade de admitir que simplesmente perdeu uma discussão por falta de consistência factual e lógica; tal defeito ele encobre com um relativismo generalizado, a partir do qual uma opinião ignorante, intuitiva e impressionista tem tanto valor quanto uma refletida a partir de uma tradição teórica rigorosa e de um vasto cabedal de fatos apontáveis objetivamente. Sinto muito, mas não têm: ou bem o sol gira em torno da terra, ou bem é o contrário – não existe conciliar Copérnico e Santo Ambrósio.

Para além disso, que isso é idiossincrásia que até me fazem gostar dos que gosto, chama atenção que seu discurso é quase todo motorcrata mesmo sobre duas rodas – ao ponto de, por exemplo, Carol se queixar, no vídeo, do “excesso de pedestres no Porto da Barra”. Mas o que se esperava mesmo daquela que é considerada, diversas vezes e com razão, a melhor praia urbana do mundo? Automóveis? E desde quando haver mais pedestres, o que também ajuda a reduzir a velocidade de todos (inclusive dos carros) seria algo ruim ou indesejável para quem está de bicicleta? Deveria ser o contrário, não?

Repita para si mesmo: isto é um automóvel.

 

Tal fato ocorre na mesma semana em que a Prefeitura do Rio de Janeiro passa a considerar ciclomotor elétrico (bicicleta elétrica é outra coisa, ela não se move se não for pedalada) como se fosse bicicleta – ao arrepio dos órgãos de trânsito nacionais e estaduais (que podem ser conservadores e corruptos, mas neste ponto estão certos: se tem motor, tem de pagar IPVA, ter carteira de habilitação, placa e capacete).

Uma das melhores políticas cicloviárias do planeta agora porta esta chaga. O que não chega a ser novidade para quem convive com Denir Miranda – mineiro do interior, e morador de Brasília desde tempos imemoriais.

Denir é a direita de que toda a esquerda brasileira precisa. Conservador, e muito afeito a antropologia republicana (no sentido yankee) de Roberto DaMatta, a muito vem apontando o seguinte: “Certo, bicicletas como meio de transporte ubíquo mudam mentalidade, e o Rio de Janeiro já tem uma vida pedestre invejável, o que é meio caminho andado; mas o contrário também é verdade: a mentalidade de um povo pode mudar o modo com que usa bicicleta, ou qualquer outro instrumento. Quem disse que a ‘Velorution’ à brasileira vai, de graça, escapar do patrimonialismo e do populismo?”

Pra engelianizar a coisa: quem disse que a mera infraestrutura muda a superestrutura? uma superestrutura troncha não pode criar uma infraestrutura que torne as mentalidades ainda menos civilizadas? Não é, aliás, mais provável que seja assim?

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Pra não acharem que isso é apenas no plano da mobilidade e do direito à cidade, vejamos. Certo dia conversava no café do Teatro Vila Velha (local, portanto, de significado nacional de subversão e liberdade) com um músico bem mais jovem que eu, que usa maconha esporadicamente – e se colocava contra a descriminalização ou legalização da droga. Seus argumentos beiravam o catolicismo mais reacionário, e ignoravam a experiência recente da Califórnia e da Espanha. Mesmo a experiência holandesa ele não sabia apontar as falhas, que são muitas.

Já eu, que de maconha não suporto nem o cheiro, é nausea na certa, tenho claro que a descriminalização, e algum modelo que legalize a produção e troca (se não a venda) de maconha é urgente no país. De outras drogas idem, mas menos e nem tanto.

Eu, que não tenho a infraestrutura de comprar e usar maconha (com todos os riscos que isso ainda tem – apesar de que, pelo comum, nenhum policial retira ninguém do Museu de Arte Moderna da Bahia por estar fumando maconha), tenho claro na superestrutura o que deve ser feito. Alguém que usa, ainda que esporadicamente e não seguidamente, que portanto está exposto diretamente a todos os percalços materiais da infraestrutura, superestruturalmente quer manter tudo como está, ou pior.

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Longe de ser anedótico, isso explica não apenas a eleição de Dilma Roussef, ou a crise de carolice merovíngea que se abateu no segundo turno eleitoral, ou os descaminhos anti-Gil/Juca do MinC atual da Bruaca Ana, a Demente de Hollanda. Explica, isto sim, a escolha de Dilma como candidata – não tanto nem apenas por Lula, e sim porque forças levaram a não haver outra alternativa.

O que não era suportável para a classe média alta e também para a pequeno burguesia, no Lulismo, não era tanto seu franco trabalhismo nem a distribuição de renda direta. Era o efeito psicoterapêutico na mentalidade que isso tinha: de repente, tava claro que governo dar dinheiro pra pobre era bom, onde já se viu? É na superestrutura que Lula fazia sintoma.

Dilma seria a única pessoa que manteria, e mesmo acirraria, as mudanças infraestruturais vindas de Lula, mas retroagiria das mudanças superestruturais. Daí o ECADismo do Ministério da Cultura, daí a subserviência do Meio Ambiente – que se na época de Marina não ganhava todas, aliás quase não ganhava nenhuma, sabia jogar o bom jogo e perdia de pé.

Contudo, não se pense que isso se dá apenas na esquerda dilmista (e ao fim e ao cabo eu talvez esteja falando meramente da “modernização conservadora”, desta vez fantasiada de carnaval e agora de roupa de enterro – com Lula ao menos tivemos um “conservadorismo modernizante”, e bem ou mal idem com Fernando Henrique Cardoso). O que fazem os decepcionados e os anti-dilmistas in pectore, como o PSOL? O mesmo, por outras vias: evitam mexer nas mentalidades. O que mais explicaria o apoio do partideco da Heloísa Histérica, A Louca, ao motim da Polícia Militar na Bahia? Sim, porque diferente de Saúde e Educação, PM não é infraestrutura de estado – nada produz de que o capital possa auferir lucro. Trata-se de um aparelho ideológico do estado – a mais pura das superestruturas. Que o PSOL queria manter como estava, ou talvez inda mais forte.