O Som das Sextas – XXXIV

09/03/2012 at 11:59

O efeito Magary

Muito se tem elogiado, e torcido o nariz, para Magary Lord: figura ambivalente, ao mesmo tempo abraçado com vigor pelo Axé-System mas em boa medida vindo de fora dele e contra ele, ocupa um lugar que Charles Fourier chamaria de “O Neutro” – nem jegue nem cavalo, a mula não é um animal menos eficiente que os dois que lhe dão origem, ao contrário: mais potente, porque mais plástico, supera ambos, os excede.

De alguma forma, Magary é menos a ascensão de um menino pobre ao estrelato, e mais a radiofonização pop de uma certa aristocracia negra – meio como a MoTown de Detroit foi para o jazz do Cotton Club. Assim, ele tem antecedentes e galhos paralelos – rizomas, eu diria se eu não fosse não-deleuziano (o que é mais do que não ser deleuziano).

Antecedentes

Talvez a raiz estética mais proximamente identificável seja o Galpão Cheio de Assunto, de Peu Meurray, na Avenida Djalma Dultra. No sopé de Brotas, entre os Galés e o Santo Agostinho, do lado de Nazaré e quase Bandeirantes, num dos portais que vão dar nas Sete Portas (de sua feira meio árabe ainda que inspira tanto Letieres Leite), o Galpão é um misto de fábrica de sucata, estúdio, boate de favela, e moradia do casal Meurray (Peu, aliás, adota o sobrenome da mulher, Graça, e não o contrário) – o Cheio de Assunto foi bunker de resistência durante o Carlo-Axezismo (A Volante do Sargento Bezerra tocava muito lá no começo), é o olho do furacão se fosse zarolho e vesgo (eu ia dizer fora-do-eixo, mas não quero criar mal-entendidos).

E nele produz há décadas seus tambores a partir de restos de pneus. Sua relação com Magary não é aleatória: participam juntos do projeto Cabeça de Nós Todos, que inclui também Saulo Fernandes, da Banda Eva, e agitou o Pelourinho ao longo do ano de 2011.

Paralelismos

Também no sentido de um groovamento marvin-gay do som negro da Bahia surgiu Dão e sua Caravana Black. Mais intensionalmente retrô do que Magary, e mais sofisticado também, Dão busca uma proximidade maior entre o samba-reggae e o funk norte-americano – enquanto Magary prefere atravessar o Atlântico em direção ao semba de Angola e Moçambique.

Se Dão tem certa heráldica classuda (e, para os que privam de conviver diretamente com ele, uma novilingua malandra e ao mesmo tempo barroquista: “tubaina” significando cerveja, “Foi romântico” para dizer que tudo correu bem, etc.), Tiganá preserva, este sim, certo intimismo e mesmo pedantismo que vai remontar de um lado a Batatinha e de outro a Milton Santos.

Seu esnobismo chega ao ponto de ser dos poucos compositores do mundo a escrever letras em yorubá castiço, nagô fluente.

Porta de vai-e-vem & o que nela pode passar

Sempre tive restrições a Magary: reconhecendo suas qualidades, não conseguia me agradar; da única vez que fui a uma festa sua, o show atrasou horrores para começar e fui mal-recebido. Aliás, este é um problema: rapidamente assimilado e divulgado pela indústria, não precisou da rede comum de críticos e divulgadores, o que o colocou mais longe de uma reflexão política, tática e estratégica, sobre sua própria produção.

Contudo, gente que se rasgava em elogios para ele, depois desse carnaval (em que estourou ao ponto de sua canção Circulou ser considerada a melhor do ano, e não sem razão) caiu em crises de decepção. “Ele tocou no Camarote Salvador mesmo quando vários artistas se engajaram no boicote!”, “Ele fez firula em frente a Camarote no seu trio num ano em que quase ninguém apelou pra isso!”, “Ficou repetindo repertório em trio elétrico do Estado como se fosse seu privado! – aliás ele nem devia ter passado ou mesmo se inscrito no edital”.

Concordo com tudo isso, mas vejo nisso ainda assim uma potência mais do que um demérito. O Axé-System está tão esvaziado de criatividade que teve de cooptar alguém que vem de seu oposto (apesar de ter sido da cozinha da Banda Eva) para se manter – e que, como ele mesmo diz, não precisa falar de bunda, nem fazer melodias repetitivas e harmonicamente pobres, nem rimar mamão com melão pra fazer todo mundo dançar. É como se Circulou fosse como aquele reggae massa de Sine Calmon ter ganho melhor música do carnaval em 1998 – só que então isso era uma exceção bizarra, e hoje uma consequência inevitável.

Se bem usada, esta posição pode fazer com que mais uma cancela do Axé-System se abra, e Magary seria uma porta de vai-e-vem por onde pode chegar pro lado de cá Banda Eva, Cheiro de Amor, o que foi o auge do pagodão bahiano (Gerassamba/É O Tchan, Cia do Pagode, etc.), e – mais importante! – fazer chegar do lado de lá Orkestra Rumpilezz, Neojibá, Suinga, Baiana System. Para isso é preciso não apenas que Magary se adube de criticidade, e sim também que nós, da Reforma Cultural, não o empurremos pra longe como outrora fez burramente o rock com o pagodão (como se o pagodão não fosse muito mais subversivo do que qualquer heavy metal de playground).