Trans-Geografia do Carnaval

26/02/2012 at 13:37

É notável que raro se note que o vocabulário e a gramática do Carnaval sejam os mesmos da Guerra: batalha de confete e serpentina, fazer da casa um bunker, estocagem de alimento e bebida, grito de carnaval como grito de guerra; estabelecimento de território, rotas incomuns, ocupação da rua. Se a geografia serve primeiro para fazer guerra, não é apenas que sirva também para fazer carnaval; antes no avesso: carnaval serve primeiro para fazer geografia – realizando o que Hakim Bey queria (e a bicicleta faz mas com menos potência): estar em várias escalas cartográficas a um só tempo, descobrir e inventar novos caminhos físicos de um bairro a outro. Uma anti-geografia por superação.

 

Direito a Cidade, Direito a Cultura – ou propriedade estética e especulação fundiária urbana

Engana-se quem supõe que o carnaval de Salvador é mera brincadeira – ou, como quer certa esquerda fácil que idealiza Recife como um paraíso socialista, mero mercado. Aqui se trava a um só tempo o grande combate: o Axé-System é uma forma de latinfúndio cultural, como o combatido pelo MinC de Gil/Juca, ao mesmo tempo em que especula sobre o solo urbano (menos com as cordas a abadás hoje, mas muito mais com os camarotes).

Daí que não chega a ser surpresa que o Movimento Desocupa, nascido da revolta contra a ocupação de uma praça inteira em Ondina, acabe por ser um movimento contra o tipo de planejamento urbano de Salvador que alija os cidadãos de sua urbe. Ou que o BaianaSystem, ao ser uma verve pelo carnaval libertário e de dentro dele, também tenha como tema central a especulação imobiliária.

Direito a Cultura e Direito a Cidade se tornam, no carnaval, uma só e mesma coisa. E é nele, ao menos na Bahia, que o combate não se dá tanto em discursos e idéias, mas no corpo: no mete o cotovelo pra abrir caminho, no furar a corda de bloco, e também no juntar num beijo, no colar de Filhos de Gandhy trocado, no coral negro da Liberdade, no perfume de alfazema aspergido pelo ar chegar na beira de meu desejo

 

Praças do povo, praças privadas

A questão da praça de Ondina já disse que é apenas uma epítome, em que contudo há positividades. A idéia de que um camarote pague pela construção e restauro da praça não é ruim – é um principio do que poderia ser, passos adiante, um padrão de outorga onerosa. Ruim é que com isso o camarote se ache no direito de ocupar a praça inteira por 3 meses seguidos, vedando-lhe o acesso ao cidadão comum (isto é: não pagante) que assim não acessa aquela praia. Camarote este que pertence aos netos de ACM – o que tem a felicidade de tornar explícito como Axé-System não sobreviveria sem Carlismo, e vice-versa. Porém, os movimentos deste ano levaram a outra coisa boa: nunca antes um grupo privado do Axé-System teve de vir a público se defender e se justificar, inclusive mentindo e fingindo ter apoio dos blocos afro (que odeiam camarote e apoiam o Movimento Desocupa). O Axé-System, senhoras e senhores, que já estava ele sim na UTI, zumbi semi-morto por aí, agora está emparedado, forçado a falar – e, claro, gagueja.


 

Todavia, não é preciso privatizar uma praça para impedir que o povo nela esteja. A Prefeitura de Salvador resolveu fazer um ridículo palco sobre a Praça Castro Alves a título de revitalizá-la. Ora, não confundam isso com o camarote da Secretaria de Cultura do Estado no Cine Glauber Rocha ArtPlex com sua varanda elétrica: esta não ocupava a Praça Castro Alves – a vista do mar, os pés do poeta onde a massa descansa de olho na festa, estavam lá para ser usados, a balaustrada para namorar. O palcão desse ano, além de inútil (quase ninguém tocou lá), uma estrutura excessiva (a do Glauber, modesta, daria conta dos intervalos entre trios elétricos), praticamente fez com que a Praça Castro Alves deixasse de existir! Mal se via o poeta estendendo a mão para a multidão. E notem: não era um camarote.

Ainda sobre eles, uma boa nova esse ano: não teve quase firula. Todo mundo saíndo no horário. Quase ninguém enrolando em frente de camarote e congestionando o circuito, mormente o da Barra. Aleluia!

 

Com o pé no chão

Se o Carnaval é uma hiper-geografia (alhures também, embora exponencializado aqui), quando o capital e o mercado resolvem se apropriar e gerir ele, tentam fazer uma des-geografia. A coisa começou pelos sambódromos do Rio de Janeiro e São Paulo: um carnaval num lugar não-cidade, quando o carnaval é a cidade na máxima potência. Dá certo por algum tempo, mas depois começa a vazar. Não por acaso, a recuperação e reerguimento do Rio de Janeiro se dá ao mesmo tempo da volta de seus blocos de rua. Em Salvador não está sendo diferente: mal-grado, e mesmo por causa, da péssima administração municipal atual, surge uma vontade pela cidade que vai dar também em blocos, não só sem cordas mas sem trios elétricos, nos bairros. Se o Rio Vermelho já tinha o Paroano Sai Mió, agora tem o Palhaços; o Santo Antônio Além do Carmo ganha o De Hoje A Oito e o Bloco Rodante; o Suinga fez bloco parado na Barra no segundo dia da já tradicional Banda do Habeas Copus, a que se juntou também Jau e seu Bloquinho.

A idéia de desterritorializar o carnaval para que ele seja mais lucrativo (o que daria errado, é óbvio) sempre ronda Salvador. Fala-se de colocar um circuito no Centro Administrativo ou na Avenida Paralela, o que seria como fazer sexo sem corpo. Vejam bem, eu sou favorável a outros circuitos: é uma pena que a Ribeira já não tenha a Segunda-Feira Gorda; que o Uruguai do grande bloco Jegue de Calçola & Jega de Cueca não tenha um oficializado; que se aposte em tudo quanto é evento ao longo do ano para as avenidas de cumeada do Centro Antigo, que já não suporta fisicamente isso, quando se tem o hiper-territorializado bairro do Comércio na baixada ao lado, com 4 elevadores urbanos, estação de trem e terminal de ônibus urbano, e que precisa urgentemente passar a ter habitação regular permanente e temporária.

Mas daí a propor aberrações destas que Durval Lelis propõe vai uma distância. Sorte nossa que quem apoia a concessão privada temporária de ruas é o candidato triplamente derrotado Geddel Vieira Lima – o Suíno.

Ainda sobre trios elétricos versus blocos de pé no chão: não se pode negar que se a guitarrinha bahiana, industrializando o carnaval de Salvador, deu a ele a potência que tem, também levou as contradições que desenvolveu (e que quase mata a própria guitarrinha). É possível uma solução de um carnaval industrial sem ser hiper-industrial? De trio, mas sem diesel e sem caminhões monstruosos? Sim, e o Micro-Trio esse ano mostra isso. Se já usava antes bicicletas para gerar energia elétrica, o Micro-Trio esse ano teve de recorrer ao crowd-funding (que não deixa de ser uma economia do comum) já que não foi agraciado pelos editais do Estado. E isso é sim bem diferente de pagar abadá – abadá é da ordem da mais-valia, é sobre-lucro; crowd-funding é a remuneração justa de um trabalho coletivo.

 

Pipoca de microondas – uma saída de emergência

Por que o pomo da discórdia sobre o Carnaval Bahiano, que sempre foi as cordas e abadás, agora passou a ser os camarotes? Porque os outros dois suportes do Axé-System – um estado que ao mesmo tempo garantisse o capital com violência mas não o gerisse – foram superados. Primeiro, com as políticas Carnaval Pipoca e Ouro Negro da Secretaria de Cultura do Estado. E nos últimos dois anos, mesmo parte do capital privado tem preferido sair sem corda alguns dias da semana, nem que seja por estratégia de marketing. Fato é que espaço e diversidade no chão da rua voltaram.

O terceiro pé é a privatização do espaço, que em parte estava também nas cordas e abadás, mas agora recai todo sobre os camarotes. Que se fortalecem, no sentido de se adensarem e incharem, e por isso mesmo caem em contradição e viram único alvo de ataque – já que as outras questões de alguma forma estão sendo resolvidas. Não por acaso, o controle sobre espaços do camarote é o único dos três pés do Axé-System que só a Prefeitura pode resolver, uma vez que se trata de uso do solo.

O paroxismo chegou com os sultões do Harém propondo-se a fazer uma área de “pipoca, mas protegida”. A idéia era tão ridícula que eles retiraram do ar, só que a gente copiou e colocou lá de novo. É o tipo de coisa que se desse certo, daria errado: paulistada ia ver como é bom estar na rua com o povão, como é seguro, e ia deixar de pagar camarote (ao menos nos moldes que hoje são). Não rolou, entretanto o espaço para isso estava lá – com luzes apagadas e uma placa, obviamente falsa, de “Saída de Emergência”.

 

Münchausen ao contrário – ou corda pra se enforcar

De modo que o Axé-System está numa areia movediça: tenta se mover pra se salvar, e aí afunda mais; mas se nada fizer, afunda também. É como o Barão de Munchausen na metáfora de Michael Lowy, só que às avessas: se este propõe se puxar pelos cabelos para sair do atoleiro, o Axézão sequer cogita isso.

A maior prova disso é a declaracão de Bell Marques, do Chicretão, que saiu sem corda na quinta-feira na avenida de noite e foi tranquilíssimo e seguro. Claro que ele precisa dizer que isso não é sustentável: por um lado ele precisa não da paga pelo seu trabalho (o patrocínio e a propaganda já dão conta disso), mas da sobre-paga, da mais-valia que é o abadá; e por outro, se fica claro que não é o Chiclete que gera violência, mas a corda, ninguém vai querer pagar mais! Primeiro, porque só se paga abadá e camarote pra se ter “segurança”; segundo que esta tentativa de gerar segurança é ela mesma que gera violência e é uma violência. O outro nome do Axé-System não é indústria da alegria, ou do beijo, mas do Medo (e novamente estamos de volta a tática de guerra).

Se ele tivesse saído sem corda, e nada tivesse dito, sua imagem estaria menos arranhada…

 

Viadagem des-Mascarada

Como nem toda des-territorialização é ruim, as bichas ficaram desterritorializadas esse ano e isso foi ótimo! O bloco Os Mascarados, que tradiconalmente não era gay mas era muito friendly, há 6 anos, e ainda com Margareth Menezes a frente, resolveu inovar: sair com corda, mas de graça. Numa época em que sequer havia política pública para Carnaval Pipoca, isso foi um marco. Contudo, de lá pra cá isso se deteriorou: Margareth saiu, e a qualidade musical ficou um desastre; a corda apertada demais e sem sentido quando mesmo o Axezão passa a sair sem corda.

Resultado, está insuportável. Idem para Daniela Mercury que no seu trio sem corda tá atraindo uma violência de troca-murro típica do Chicretão de uns tempos atrás (e que apesar de não ter participado tanto assim do Axé-System, e tê-lo combatido anteriormente, agora passou a defendê-lo), e o Crocodilo só dá viado fazendo carão. Resultado? Passa a ter paquera gay mais acirrada mesmo na pipoca de Armandinho Macedo e no Retrofoguetes; blocos da Avenida ficam mais friendly, como o Cheiro de Amor, e mesmo na Barra, o Bicho de Ricardo Chaves. No limite, passa-se a ver Filhos de Gandhy beijando homens (é um bloco marcadamente hetero mas, pacificista e yorubá, profundamente tolerante) mesmo em locais elitistas e homófobos como Ondina – como nesta foto, um achado semiológico ímpar, que mostra como a questão está sendo encarada com naturalidade.


Albinismos partidários

O Secretário boi-de-coice não deixou por menos neste carnaval. Depois de ter usado a assessoria de comunicação da Secretaria de Cultura do Estado para divulgar livro seu publicado pelo PT (como se a SECULT fosse orgão de partido e não de governo) ano passado, esse ano se ocupou de dar nota de pré-candidato a prefeito, também do PT, saindo o Gandhy. E mais: lança edital que pontuava, para seleção de cargo público, quem tivesse histórico de militância partidária ou sindical.

Os que diziam que Marcio Meirelles ideologizava a máquina agora podem reclamar de barriga cheia: Albino Canelas Rubim o faz sem maiores pruridos. Deixei de apoiá-lo por isso? Não, porque ele é a continuidade da Reforma Cultural por outras vias. Mas se Marcio era boi-de-cambão e precisava de freios, Albino é boi-de-coice e se não apanhar não anda. Batam sem piedade!

Até porque, acadêmico encastelado que antes sequer frequentava o TCA (Paulo Gaudenzi, eterno secretario da semi-pasta sob o Carlismo, ao menos frequentava) e que já cometeu gafe de ir ao Museu de Arte Moderna numa apresentação da Sinfônica do Estado e não avisar ao maestro que ele estava na plateia (fui eu que avisei e apresentei quem era, de longe) – Albino não tem a sutileza das necessidades da cultura real. Pra ele, cafés e bistrôs em museus deve ser uma perfumaria. E se ele retomou os trios do Programa Carnaval Pipoca foi colocando pra sair meia-noite na avenida – chega na Castro Alves 3h da manhã pras pombas de São Bento verem, né mermo?

“Ah, mas ele não tem como saber disso”. Qualquer moleque de Periperi que pegue pipoca sabe disso: horário nobre na Avenida é de tarde ou de noitinha; na Barra é de noite ou madrugada. Marcio Meirelles sabia disso e peitava a Prefeitura para que os trios licitados pelo Estado saissem em horário digno. Albino sequer enxerga que, agindo assim na base do “qualquer horário serve”, está é jogando dinheiro (meu, seu, nosso) fora.