O Espetáculo da Realidade
O recente estupro (que não foi estupro nem deixou de ser, subvertendo sintaticamente, por paraconsistência, a lei lógica do terceiro excluído) ao vivo & a cores, transmissão pague-pra-ver (não paguei nem vi) no Big Brother Brasil foi a melhor coisa que já aconteceu em toda a história dos Espetáculos de Realidade (reality-shows). Digo isto com a mesma audácia com que John Stockhausen disse que o atentado de 11 de setembro de 2001 (09/11) foi a maior obra de arte de todos os tempos – “tão abstrata que só árabes a fariam”, completou o grande maestro. Digo isso também com a mesma ambivalência de Jean Genet que, ao sacralizar o crime e buscar nele estar pra fora e acima da manada (não por acaso tudo começa na Barcelona ainda em reforma de um Gaudi ainda vivo) do “vocês” (os leitores proustianos do velho menino-ladrão) que constitui “aqueles que disseram sim a beleza na sua superfície, e não a poesia de seu engodo”, reune o Dolmancé de Sade a São João da Cruz.
O semi-estupro ou pseudo-estupro foi a melhor coisa que já aconteceu aos Espetáculos da Realidade porque constitui um retorno do recalcado de sua arqueologia – isto é: arruína sua história já em ruínas, transformando-a na estória de papelão que já era. Ora, não me venham com guy-debordices de que Reality-Shows são fruto da pós-modernidade, do panóptico bentham-foucaultiano, do just-in-time da hiperconectividade internética. Não que não venham disso: tudo isso é verdade, uma obviedade, porque de uma superficialidade que não é pele. Eu quero mais e quero outra coisa.
Quem, senhoras & senhores, pela primeira vez concebeu na teoria e na prática a idéia de confinar gente num lugar ao mesmo tempo luxuoso e inescapável (de novo Genet nos lembra que as prisões carcerárias podem ser tão confortáveis quanto os palácios mais nobres), pra nele estabelecer um puro jogo (no sentido que mais tarde lhe dará Lewis Carroll e Ludwig Wittgenstein e Gregory Bateson) de afetos, ao limite não da morte mas da sua pulsão? Alfonce-Donatien-François, Visconde de Lacoste, Marquês de Sade.
Big-Brotheres têm mais de bordel (no bom e luxuoso sentido) do que da falta de desejo do romance de Orwell (que por isso mesmo é dos grandes textos de amor da modernidade) – e se isso não estava claro antes com tanto amasso sob edredons, agora fica inescapável. Reality-Shows nada mais são do que um uso massivo, burguês e capitalista, do que era o brinquedo rococó e aristocrático do Castelo de Seelings. E se o anarquismo das TAZ do Hakim Bey é o anti-governo, BBBs são o anti-antigoverno. Em vez de Filosofia na Alcova, não a Filosofia sem Alcova (a Universidade desde Kant, que brocha qualquer um!), mas sim a Alcova sem Filosofia (que também não chega a dar tesão).
E mais: BBBs são a não-geografia do não-lugar, lá onde Bey queria uma anti-geografia porque um pan-lugar – o que não deixava de acontecer em Sade. “Viaja-se muito nos romances sadeanos”, nos lembra Roland Barthes, “e isto não deixa de aparecer em pequenas sinedoques cartográficas: modos de vestir, opções culinárias, clima e temperatura”. Nem praça, nem lupanar, mas também não shopping center, Reality-Shows são a utilidade pública do que há de mais íntimo: as fezes, como no Segundo Ciclo dos 120 Dias de Sodoma.
E é por ser um puro jogo sadeano, a que se tentou sem sucesso higienizar (o Marquês sabia que a feiura pode dar mais ereções & ejaculações que a beleza pré-fabricada que a Globo tanto quer), que não se pode falar propriamente de estupro, mas também não se pode deixar de falar dele. Voltemos a Sade justamente no seu maior discípulo: General-Conde Chordelos de Laclos. Se Sade faz o romance não-pornográfico onde há muito sexo, As Relações Perigosas é justamente o romance pornográfico sem sexo nenhum – “blind-romance de cortinas cerradas”, diria Ítalo Calvino ao comentar Flaubert. Ambos são literatura-jogo – Laclos explicitamente elevando o romance epistolar a condição de jogo de cartas embaralhadas: tudo é blefe, a realidade é plenamente linguageira (inclusive, sabemos, a Marquesa de Meurteil mata o Visconde de Valmont sem sequer estar na mesma cidade que ele, e por isso não pode ser incriminada, como Heiner Müller tão bem revelou em sua peça Quartet. É um assassinato cuja arma é o idioma). Porém, os jogos de Sade são entre quatro paredes onde a tudo se vê: joga-se com os corpos; já Laclos, além de ser pura língua e em quem no entanto não há cenas a serem vistas, faz o jogo entre um cômodo e outro, entre um palácio e outro, entre uma cidade e outra.
O que não deixa de acontecer nos BBBs, dada a participação externa da audiência para, por exemplo, votar em eliminações. E chegamos ao fato de que a Globo fez um Relações Perigosas virado do avesso. É aí que o casal estuprado/estuprante se estrupiou. É certo que Ela foi abusada por Ele; porém, sendo um jogo, Ela sabia que corria diversos riscos em se embebedar; e Ele também deveria saber que abusar dela lhe custaria caro. Deixemos de moralidades, canhotinha & esquerdalha brazuca! O que houve é que sentaram-se na mesa de go quem achava que se tratava de resta-um – ou então exatamente o contrário, o que é o mesmo.
Ademais, quem nunca se aproveitou sexualmente de amigos embreagados não teve pós-adolescência. Claro, não qualquer amigo. Eu mesmo tinha um, “amigo” entre muitas aspas, que todo mundo sabia que tinha um impulso homossexual que não se realizava. Era me encontrar, e ficava bêbado, ou fingia ficar, e se colocava em situação em que a experiência homossexual comigo se realizasse sem sua participação: ao mesmo tempo sabendo, e negando, seu desejo. Claro que aproveitei depois e espalhei os acontecidos em rodas de amigos em comum – até por crueldade e potência balzaquiana (ou george-sandiana se preferirem), uma vez que ele era mau-caráter fingindo-se de bonzinho. Ninguém acredita, no entanto ninguém duvida do que relato – todos duvidam, contudo, do contra-relato dele até hoje. Ao ponto de haver uma piada recorrente entre nós: “Assuma, Lucas, você comeu Fulano”. E por increça que o parível, não, não o fodi (embora eu tenha feito muito mais, e muito menos, do que isso).
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