O Avesso da Viadagem
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Epigrafia: escrita na epiderme – ou Superfície é Profundidade
Em seu mais novo filme, Pedro Almodóvar, se desvencilhando do melodrama sirkiano e das tentativas de ser Felinni ou um Carlos Saura cômico, constrói um conto de fadas sinistro ao gosto do mestre James Whale (é um Noiva de Frankenstein, só que às avessas: é pela mortificação de um corpo vivo que se cria uma mulher desejável), além de aprofundar as influências de Luís Buñuel (tanto pelas cenas em que animais, particularmente insetos, aparecem sem mais nem menos na tela, e em profusão, quanto pela fábula ser muito similar à Bela Da Tarde – novamente, ao contrário: ninguém tem impulsos masoquistas em A Pele que Habito).
Muita coisa poderia ser dita, analiticamente, sobre este filme – especialmente por mim, que não gosto de Almodóvar e considero que ser fã dele é prova de des-cinefilia (salvo, é claro, por Matador). Não cairei nessa. Prefiro tomar este preâmbulo como epígrafe, elevando-o, como diria Ítalo Calvino, a dignidade mitológica em que o texto literal significa mais que o interpretado. Retiro no entanto duas consequências desta fita:
- O médico cirurgião, personagem central na película e doplegangher do Dr. Victor Frankenstein, é um exemplar, pelo entrecho übber-transexualista da estória, de que o desejo não oscila meramente entre a homossexualidade e a heterossexualidade. O Robert de Antonio Banderas, que sem dúvida sempre gostou apenas de mulher, deseja uma mulher que construirá a partir do corpo vivo de um homem; mais ainda, só passa a desejar esta mulher no processo. Ele é gay? Bi? T-Lover? Hetero? Nada disso, e tudo, e mais;
- Caberia perfeitamente como epígrafe desta nova obra de Almodóvar uma frase de Paul Valéry em uma de suas brilhantes aulas (e aqui entra como epígrafe de epígrafe, ou metaepígrafe se preferirem): “O mais profundo é a pele“.
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Uma vicissitude normopática
Os ditos Movimentos GLBTZW-KY, e outros discursos da viadagem institucional que o habitam, estariam na condição de levar às últimas consequências a teoria freudiana da sexualidade – a um só tempo afirmando radicalmente a biologia de Darwin, e a superando por contradição. Refiro-me a uma nota de rodapé de 1922 ao primeiro dos Três Ensaios Sobre a Sexualidade (1905), longuíssima e quase sempre ignorada (por recalque) mesmo por diversos psicanalistas (Lacan inclusive). Ela diz aproximadamente o que se segue:
Isto nos mostra como, do ponto de vista da Psicanálise, é a heterossexualidade que é um desvio a ser explicado: enquanto economia psíquica, ela é uma escolha de objeto bem mais dispendiosa do que a escolha narcísica; as dificuldades de compreender o que alguém de outro sexo deseja também aí se interpõe, com a consequência de que a descarga de satisfação é muito mais procrastinada na heterossexualidade do que na homossexualidade. O fato de a maior parte da população alegar ou compreender ser heterossexual é um problema a mais, uma vez que a disposição bissexual perverso polimorfa não impõe esta vicissitude como necessariamente mais frequente que as outras.
Antes que a Viadagem Institucional se apresse em dizer que Freud disse que a maior parte dos ditos heteros é na verdade homossexual enrustido ou que não se descobriu como tal ainda, alto lá! Óbvio que a citação acima mostra que a heterossexualidade não existiria tão ubiquamente sem fortes pressões da realidade, digamos, social (como não era a norma no Antigo Regime, a literatura galante nos mostra, nem o é em outros povos coetâneos nossos, a antropologia não cessa de descobrir); mas Freud é antes não-idiota e sabe que há forças biológicas para-além do indivíduo-espécime ainda que tomado como inconsciente, e diz respeito a espécie como tal: são os resíduos arcáicos (que Jung vai chamar de arquétipos), e é a pulsão de morte (que Freud acabara de descobrir antes de escrever esta nota à sua obra pregressa) – um efeito colateral da reprodução sexuada, que no Homo Sapiens causa especial contradição, levando o sujeito a agir contra si mesmo (eventualmente em favor da espécie, às vezes nem isso).
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Objeto fóbico: objeto de desejo
Disso a Viadagem Institucional (discurso que não é privativo dos Movimentos Gays, e mesmo pode se ausentar deles como acidentalmente nos mostra o Grupo Gay da Bahia – GGB) poderia tirar uma consequência clínica radical, se fosse não-idiota: a Homofobia ser compreendida menos como “ódio” ou “ignorância”, e mais como a fobia descrita no Caso de Hanszinho – uma reação paradoxal e infantil frente ao desejo e ao representante da castração.
Isso traria dois efeitos práticos. De um lado se entenderia a Homofobia menos como obstáculo, e mais como porta de vai-e-vem, dialeticamente: o objeto fóbico é também transicional (a descoberta é de Donald Winnicott), e se ele procrastina a entrada na castração, é também só ele que permite que ela ocorra em algum momento mais ou menos próximo. O que quer dizer também que uma quantidade considerável de heterossexuais só o é como uma evitação radical do desejo pelos homens (angústia de castração) – e nestes casos, que julgo maioria, a Homofobia não é consequência da Heterossexualidade, mas antes causa, ou melhor: são uma só e mesma coisa.
De outro, ao invés de clamar por ter “os mesmos direitos dos Heteros”, a Viadagem Adiquirida & Congênita passaria a ofertar direitos: o direito a uma escolha menos coercitiva (ao menos de um ponto de vista Imaginário) de seu objeto sexual de desejo e de suas formas de gozo. Como diz Pedro Pondé, heterossexual convicto e não por fobia ao mesmo sexo: é muito bom que na Salvador atual, por efeito da pan-culturalista Boate Boomerangue (in memorian), os meninos possam experimentar ambos os sexos na adolescência até realizarem melhor sua escolha de objeto. O que não chega a ser novidade: tribos indígenas, a aristocracia de Luís XV, a Atenas de Péricles e talvez os monastérios da patrística cristã agiam assim. Só a Ordem Burguesa, jovem de 300 anos apenas, impôs sua lógica, bastante tatibitati, como “natural” e “universal”.
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“Propaganda de opção sexual”
Quando Freud enxerga na heterossexualidade, mas não no fetichismo ou na drogadição ou nas homossexualidades, um desvio a ser explicado, é principalmente de um ponto de vista da economia psíquica. O desejo pelo sexo oposto é energeticamente dispendioso, requer um esforço de tradução e interpretação idiomática supino, e representa uma ameaça de castração anatomicamente explícita (o que as outras sexualidades exatamente evitam).
Desta forma, a Viadagem Institucional deveria formular uma teoria de mais-valia energética da sexualidade, muito similar ao que fez Ivan Ilich no tocante a ubiquidade do automóvel em meio a crise do petróleo. Carros são dispendiosos, caros, e violentos, o oposto das bicicletas – mas usar automóvel é tido como “o normal”. O mesmo vale para a heterossexualidade. E não é dizer que a heterossexualidade, ou o uso de automóveis, é um problema apenas de quem fez esta escolha: é sim um problema de todos os outros. Mais automóveis significa menos pedestres e ciclistas; mais heterossexuais (mal-)declarados significa encobrir uma diversidade sexual.
O que quer dizer que a heterossexualidade é um fetiche, no sentido estritamente marxiano (e não no psicanalítico): seu valor é, na Ordem Burguesa, quase todo de troca, tendo valor de uso nulo. Como se sustenta então majoritariamente um recurso que, especulativio, na prática é danoso para todos? Com propaganda – quase sempre enganosa. A propaganda de carro que vende ruas vazias que jamais o estarão, e garantem segurança em velocidades sobre-humanas que certamente serão perigosíssimas; a propaganda de margarina da insuportável família feliz, mãe discretamente bem-comida, maridão mediocremente culto, cachorro raça scotish-terrier, filhinhos menino-amarelo de playground.
De modo que os GLBTTWZ-KY deveriam tomar a fala da Geisel-de-Calçolão, dita PresidentE (com E porque Cecília Meirelles era poeta e não poetisa) Dilma Vana Roussef, de “não fazemos propaganda de opção sexual” por sua positividade – isto é: encará-la como uma denegação. Mesmo quando não faz propaganda de opção sexual, o Estado está a fazer; assim como quando não faz propaganda sobre como optar por sua mobilidade urbana, o Estado está a fazer passivamente propaganda pelo automóvel – e deteriorando a mobilidade de todos.
Para isso, contudo, a viadagem adquirida & congênita deveria parar de querer herdar da heterossexualidade seus ônus a título de bônus – romper com o familismo burguês e, mais ainda, trazer para este anti-familismo solteirão-dândi os heterossexuais que só querem comer bucetinhas até a velhice, e não constituir família. São inúmeros, e estão vastamente oprimidos pelo discurso pró-ineficiência-libidinal da propaganda de opção sexual feita passivamente; ainda mais, são estes os verdadeiros heterossexuais: os que preferem as mulheres por seu bel-prazer, e não para cumprir etapas de vida estabelecidas pelo capital.
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O prazer de ser vítima
Uma dificuldade contudo se interpõe a tudo isso: os viados não conseguem, geralmente, articular o fato de que preferir pica a buceta é uma mera escolha – feita em circunstâncias adversas, precocemente, e cujo processo é alvo da amnésia infantil. Preferem a frase pronta: “não tive culpa, não escolhi ser bicha” – o que é também ela uma denegação por deslocamento da particula negativa: a frase acaba querendo dizer “tive culpa, escolhi, mas me perdoe”.
Um dos argumentos para se manter essa tática meio idiota é que é mais simples para as bichas pobres (estamos falando de pobreza semiológica, mais do que financeira, claro) compreender e articular este discurso auto-vitimizante (e falso). Dito de outra forma: é mais facil manter as bichas pobres pobres mesmo, do que enriquecê-las em termos de léxico e sintaxe reflexiva. Raro passa pela cabeça dos Militantes que o fato de bichas pobres tendenrem ao travestismo não é mero direito (embora direito seja), e sim antes um problema epistêmico: sem muitos recursos linguageiros, confundem sua identidade sexuada, sua posição na sexuação e seu desejo sexual! Seria como garantir o direito dos miseráveis a avitaminose, dos analfabetos a aletria – embora ninguém seja obrigado a consumir vitamina C porque pode, nem a ler uma vez que o saiba.
Os buracos como sempre estão mais em cima: viados preferem gozar de serem vítimas coletivamente, a terem a custosa mas eficiente atitude de, diria Ricardo Reis, “tornarem-se imperadores de si mesmos” no cada-um-por-si. E afinal, como é que se combate a heteronormatividade (a homofobia é apenas seu sintoma mais violento) acirrando-a com pedidos de casamento ao Papai Estado, mesmo?
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De Puta-Martir a Dona Santinha
Num cine-debate que vem acontecendo quinzenalmente no famigerado Beco dos Artistas, Garcia, Salvador, apresentou-se uma produção semi-didática britânica sobre a descoberta da homossexualidade no colegial, bullying e queijandas chatices. A uma certa altura, o personagem principal, viado e proto-intelectual, profere: “Por que nos perseguem tanto, se só queremos amar?”.
Nada poderia ser mais falso – e pusilânime. Quando os GLBTTWZ-KY reivindicam o uso de seus desejos como parte do direito a cidade (ao fim, é disso que se trata: do direito de namorar na praça ao direito de coabitação familial), é óbvio que reivindicam também o exercício da crueldade, dos mal-entendidos, do sofrimento amoroso – de todo este Mal, transcendental porque imanente desde que Sade subverteu Kant, de que é feito o desejo e o gozo.
Por que então a Viadagem Institucional, e a viadagem adquirida & congênita no baixo-clero do diário, reivindicam seu desejo como “amor puro” (e mais: como um amor mais puro que o heterossexual, mais-que-puro no sentido de mais-valia)? Por um lado, é um investimento narcísico: têm-se assim em alta conta, como fruto da vitimização descrita acima mas também como um modo de acirrá-la (Freud dizia sobre sua própria etnia, os judeus: são perseguidos em boa medida porque se colocam em posição de “povo escolhido”. A questão econômica do masoquismo afinal é que nada garante melhor, energeticamente, o narcisismo). Por outro, fazem uma propaganda enganosa em que endossam a concepção burguesa-romântica de Amor – quando, bem ao contrário, os viados estariam em posição de mostrar que mesmo o amor heterossexual é equívoco, eivado de crueldade, arbitrário, inconstante, historicamente recente. Entre o Platão do Banquete e a mulher corneada da novela da Globo, os viados não hesitam sobre com quem identificarem-se. É caminho seguro para a santidade, isto é: para a posição de dejeto – e se Bruno Cava nos lembra que a esquerda precisa ficar mais queer-punk, é também os viados que precisam ficar mais de esquerda real (e menos esquerda afetuosa: é dizer, marxizar sua genitália, ao invés de utopizar seus coraçõeszinhos). Como, se as Viadagens preferem ser burguêsmente aceitas, e fogem do Queer e do Punk como satanás de um crucifixo?
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