Canelladas
Esta semana, no Twitter, comentava como Salvador é uma cidade tão partida ao meio (menos pela Cidade Alta X Cidade Baixa, e mais pelo Centro Expandido – do Rio Vermelho até a Ribeira – e Subúrbio Nobre ao Norte – Pituba, Itaigara, Imbuí e além) – tão partida ao meio que gerou dois TEDx que não apenas não se comunicam entre si, como se opõe em visão de mundo.
Um foi em setembro, o TEDxPelourinho, profundamente territorializado, fez um vade-retro nos discursos loucos de “O Pelourinho está abandonado!”, “Cultura na UTI”, e “Salvador não tem mobilização sócio-política inteligente”. Não apenas porque aconteceu na Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus com boa parte dos palestrantes sendo moradores do Centro Antigo de Salvador – da cabelereira Negra Jô ao Oi Kabum! e a Prof. Maria Palácios. Mas também porque os que de lá não são, e mesmo são de outra cidade, acabavam sendo representantes da “retomada da Avant Gard de Octávio Mangabeira” que vivemos hoje – como Dom Diego Badaró e seus premiados Chocolates Amma, levantando Ilhéus das cinzas e levando o Governo Estadual a desenvolver política similar com a fábrica de agricultura familiar de Ibicaraí. Quer dizer: o TEDxPelourinho, extremamente bem divulgado (e com a novidade de que qualquer ouvindo poderia gravar uma mini-palestra de dois minutos, o que obviamente fiz), cumpriu o que Milton Santos preconizava em sua tese de doutoramento: o Centro da Cidade do Salvador é o umbigo de vários territórios concêntricos, tão distantes quanto a Chapada Diamantina ou a Costa de Benguela na África.
Já o TEDxSalvador, no Itaigara, divulgado para um grupinho de seletos, é capaz de colocar como palestrante alguém como Joaquim Nery – Barão do Axé-System, dono do bloco Camaleão, tão cínico que foi capaz de dizer, na discussão pública sobre o carnaval em 2007, que dentro do bloco do Chiclete com Banana era mais apertado do que fora das cordas. Ah, claro: ricaço paulista paga dois mil reais num abadá pra passar sufoco – deve ser uma fantasia masoquista (e uma propaganda enganosa da parte de Nery). Quer dizer: nada mais anti-“Salvador-da-Avant-Gard” do que a platitude litorânea e carro-dependente do TEDxSalvador.
Eis que ninguém menos que a produtora cultural Piti Canella resolve me interpolar, em defesa de Joaquim Nery. O que é curiosíssimo, uma vez que ela é peça chave da Reforma Cultural Bahiana no âmbito privado (motivo pela qual a admiro imensamente) – do Anti-Axé e do Pós-Axé (por exemplo, produzindo a Conexão Vivo), o que a coloca na prática como opositora do Axé-System dos Joaquins Nery. Ou assim deveria ser.
Como se vê, não só Piti Canella defende alguém que ela deveria tomar por ex-algoz e adversário, como o faz usando argumentos ao arrepio da realidade. Qualquer cordeiro de bloco sabe que o Axé-System não gera emprego coisíssima nenhuma – ou segregar o espaço urbano carregando cordas com gente empurrando por 12h seguidas em troco de 15 reais e um pacote de bolacha é emprego?! Nem sub-emprego isto é: cabe direitinho no que o Ministério Público do Trabalho tem chamado de “condição laboral similar à escravidão”. E, mais além disso, com as sucessivas Pesquisas SEI-SECULT Sobre o Carnaval (pioneiras no Brasil até em demografia de multidões, acabando com o mito que Joaquim Nery propalava: Salvador não tem milhões de pessoa nas ruas durante o carnava e sim 500mil todos os dias) – sabemos a partir destes levantamentos que blocos de abadá e corda impedem a geração de mais emprego e mais renda, uma vez que mais de 50% dos trabalhadores do carnaval estão fora das cordas e é fora das cordas que 70% do dinheiro e do consumo acontecem. Portanto, cara Piti Canella, o Carnaval de Salvador não só não gera emprego, como os impede de serem gerados.
E em que o Carnaval Abadazeiro seria “auto-sustentável” (sic)? O que Estado e Prefeitura arrecadam fiscalmente com blocos de corda e camarotes não cobre sequer o que gastam. Porque sobre estes incide ISS e ICMS, mas não incide IPTU – e sim, deveria: porque ocupam solo urbano de modo privado. E não adianta dizer que “blocos ocupam em trânsito”: a Dinamarca tem IPTU pra carro, porque mesmo em movimento automóveis são uma ocupação privada do chão que é de todos.
Fora o fato de que o Carnaval do Axé-System é uma expropriação do direito a cidade: quase 70% da população de Salvador nem sai de casa durante o carnaval (embora da população da festa, 70% sejam de soteropolitanos, fora das cordas, na maioria pobres), e os moradores dos bairros circunvizinhos são obrigados a abandonar seus lares durante a folia momesca, ou alugá-los, e irem para outro canto se quiserem dormir. Qualquer semelhança entre o Baronato Abadá-Cordeiro e a Indústria do Automóvel não é mera coincidência.
Não adianta dizer que assim é em outras cidades: Recife, Rio de Janeiro, New Orleans, usam de som acústico nos seus desfiles de rua – e não estou aqui propondo uma desterritorialização como o Sambódromo, excluindo ainda mais o carnaval de sua relação com a cidade (embora em Salvador ele precise ser repensado geograficamente: por que não usar o amplo, e sempre vazio, bairro do Comércio, ao invés da frágil cumeada da Avenida Sete?). Mesmo o carnaval eletrificado que herdamos de Dodô&Osmar pode ter um volume sonoro mais módico.
E não estamos contando com toda a violência que a mera presença de cordas e abadás gera – e que custa muito ao Estado, mas nada aos bolsos lucrativos de Nery. Em canto algum do globo a Indústria do Medo é tão materialmente palpável: gera riscos para que possa combatê-los. Nem o fato de que os trios podem ser lucrativos sem corda, apenas com uso de propaganda, como o Bloco Eva vem fazendo desde este ano e outros querem aderir e outros ainda já faziam antes, como Daniela Mercury. Nem ainda como a monocultura latifundiária do Axé-System é tão empobrecedora que impedia a renovação estética da Bahia não só na música, e mesmo dentro do Axé Music que se mediocrizou – isto é: impediria o sucesso da própria Piti Canella.
Enfim, o Axé-System de Joaquim Nery é puramente especulativo, predatório, e só teria surgido (e se sustentado) na “ditadora perfeita”, escravocrata como ela só: o Carlismo. Disso ninguém duvida, salvo talvez a supracitada produtora cultural.
* * *
A questão que se coloca é: por que então Piti Canella sai em defesa de um sistema contrário a seus interesses, usando argumentos que ela sabe que são mentirosos (porque qualquer um com o mínimo de bom-senso sabe; porque a pesquisa SEI-SECULT sobre o carnaval é amplamente divulgada)?
Temo que seja uma precoce sensação de “já vencemos todo o mal”, que se manifesta também naquela certa acriticidade da banda Maglore; e uma confusão entre optar por usar das táticas do Axé-System (como a BaianaSystem faz brilhantemente), com aderir a suas estratégias e princípios (o que seria abrir mão dos próprios principios e da razão-de-ser mesma do Anti-Axé).
Acriticidade que pode ser notada na reação de Piti Canella quando avisei que escreveria a respeito do entrevero aqui, bem como ao longo de todo o debate no twitter.
Ora, o fato de ela ser produtora já faz dela “pessoa pública” tanto quanto qualquer artista – e mesmo que não fosse, basta falar algo na internet e este algo pode ser usado alhures, totalmente fora de controle. Bem-vinda a democracia digital, Piti Canella! Aproveito para comentar o “aviso” que me deu, com tom de ameaça: que pretende ela fazer? Processar-me por danos morais? Que dano moral, uma vez que eu apenas analiso uma fala dela que já é per si pública? Não que isso desse em alguma coisa – salvo em sujar-lhe a própria imagem com a pecha de cerceadora da liberdade de expressão (que a Constituição Federal só veda em havendo anonimato, e no caso não há).
Principalmente, nota-se nesta fala:
- Que a alta competência técnica não necessariamente redunda em competência política. Que ela é ótima produtora, ninguém duvida; curadora idem – mas não consegue perceber a posição política que ocupa no campo cultural atual, nem as consequências disso. De modo que não pensa estratégicamente o que taticamente executa até bem. E isso pode dar, sim, em tiro pela culatra (isso não se aplica a todos os produtores: os de minha geração, mais jóvens que ela, têm muito claro o tabuleiro de xadrez político que jogam – são estrategistas , à direita e à esquerda, mais do que táticos, e portanto mais diplomatas que técnicos, cujos efeitos redundam no sucesso por exemplo da FLICA desde a primeira edição);
- Um horror ao trabalho da crítica – a idéia de que pode haver uma relação imediata entre público e produto cultural, e entre autor e obra; ou melhor: que não pode haver senão uma relação direta, e que a mediação reflexiva por um outro qualificado atrapalha. E aí, partindo do pragmatismo tático listado acima, caimos tautologicamente nele de novo.
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