Cegueira de retrovisor
Impressionante o texto deslocado no tempo e no espaço que Zulú Araújo cometeu esta semana no Terra Magazine – fruto, só posso crer, de grave problema oftálmico e de total mau-caratismo intelectual.
Ia dizer inabilidade lógica mas, ao contrário, o texto é ardiloso, cheio de recursos sofismáticos: pinça argumentos que eram candentemente verdadeiros há tempos atrás, e lança de modo que o leitor incauto os crê válidos ainda hoje. Por exemplo, se refere a um “recente” texto de Antônio Riserio – o texto é na verdade de 2008, e refletia a realidade do fim do carlo-axezismo entre 2005 e 2007. Nada tem de atual, ao contrário do que Zulú faz crer.
Outra falácia: elenca, entre os críticos da Reforma Cultural Bahiana, Paulo Miguez. Ora, muito ao contrário: Miguez foi dos que ajudou a colocar em marcha a Reforma e a desconstruir a oposição (falsa, repito) entre Axé-System e o Anti-Axé; vem dele as políticas Carnaval Pipoca e Carnaval Ouro Negro, do Governo do Estado, únicas até agora a enfrentar a plutocracia especulativa axezeira de que tanto Zulú Araújo se queixa. Dizer que a insistência de Paulo Miguez por um Museu do Carnaval é um reconhecimento de derrota é não ter entendido nada – se ele insiste nisso é como um próximo passo, um passo a mais, na desconstrução do Axé-System (que já vai tão longe que mesmo blocos de carnaval de corda e abadá estão expontânea e autonomamente voltando a sair sem corda e sem abadá – outro fato que Zulú Araújo finge que não enxerga, ou não enxerga mesmo).
E diz que Caetano Veloso fez duras críticas a gestão de Marcio Meirelles. Primeiro, Caetano fez uma crítica só – nécia e parva, como aqui já foi demonstrado. Segundo, Caetano já havia feito críticas similares a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura – da qual Zulú Araújo participou. É a crítica de quem confunde “cultura” com “cultura erudita” – bem no caminho que segue (segue?) o perdidaço Ministério de Ana de Holanda (aquela que não sabe o que é o IPHAN).
Na verdade, bem ao contrário, a Bahia não vive um período cultural tão profícuo a décadas – em especial na música, justamente porque respiramos uma pluralidade em que o Axé-Music já não domina tiranicamente e que pode por isso ser renovado (por exemplo, pelo Suinga e pelo BaianaSystem). Quantos estados no país podem se dar ao luxo de ter uma sinfônica corpo estável tocando semanalmente (a OSBA) e uma sinfônica jovem internacionalmente reconhecida e que lota 5mil pessoas num concerto de Natal na Concha Acústica (Neojibá), unidas pelo umbigo?! Quantos, além disso, podem ter ainda uma das mais importantes orquestras da história do jazz mundial, a Rumpilezz, figadalmente bahiana (de um modo que, antes, só Caimmy o foi), e dela brotarem outras experiências similares como a Sambone Pagode Orquestra e a Orquestra Afro-Sinfônica?!
Como diria Paula Berbert: olhe no jornal – o não-axé é maioria esmagadora e já tem algum tempo. Não há capital no país que chegue sequer próxima de Salvador em programação cultural diária, salvo Rio de Janeiro e São Paulo. Recife? Nem pensar. Belém do Pará talvez se aproxime – mas tem um plano diretor urbano que data de 1992, rigorosamente cumprido. Enquanto aqui há uma prefeitura que, se pudesse, explodia a Montanha – e que, como Zulú, não se da conta da força de renovação cultural democrática que o estado e mesmo a capital estão passando.
Friso a questão urbana porque, já dissemos antes, não há Reforma Cultural sem Reforma Urbana. E aí entra outro sofisma do texto de Zulú Araújo: ele confunde Bahia com Salvador – isto é: trata a capital como um Principado, e se esquece que a Bahia é muito maior do que isso. Esquece-se do Feira Noise, do Mercado Cultural Mundial em Rio de Contas e Caetité, da Bienal de Artes Plásticas do Recôncavo em São Félix.
E aí, chegamos no ponto crucial: o suposto “carlismo” dos anti-MárcioMeirelles. Diz Zulú que os opositores da Reforma Cultural Bahiana não mamaram nas tetas do Axé-System (há controvérsias…), e que sempre votaram a esquerda. Ora, isso apenas quer dizer que não são conscientemente carlistas. Mas um discurso que fala de abandono do Pelourinho justo quando o bairro volta a ser reocupado por moradores e órgãos públicos e ser tratado como parte da cidade, e não como shopping, cheira a higienismo – aquele que Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, tem enfrentado com gosto, mas que Kassab e Serra proliferaram em São Paulo até torná-la, esta sim, uma cidade chata e careta. E tratar Salvador como se, por sinedoque, fosse a Bahia inteira é um recurso explicitamente carlista.
Zulú é tão não-carlista quanto um masoquista não é sádico do ponto de vista da consciência – mas no inconsciente o é plenamente. Dito de outra forma: no afã de ser “de esquerda”, o carlismo retorna pela porta dos fundos de seu discurso, pela culatra. É um discurso do tipo: “não sou homofóbico, mas quero viado longe de mim”; “não sou carlista, mas quero o Pelourinho sem moradores de novo”; “sou contra o Axé-System, mas não vou reconhecer nenhuma política pública em direção a Reforma Cultural que desconstrua este sistema monocultor e latifundiário”.
Sobre o sucesso do modelo Pernambucano, mal-sabe ele que foi minha geração que o invejou imensamente e sabia que alí tinhamos um exemplo a seguir. Recife saiu na frente do resto do país em termos de Reforma Cultural, inclusive porque ameaçada pelo Axé-System punjante da Bahia de 20 anos atrás. Era uma questão de reserva de mercado, e de soberania estadual pernambucana – longe de ser uma relação linear para-com a Bahia. Mas sabiamos que não poderiamos seguir rigorosamente aquele modelo, até porque a indústria do Axé nos legou uma positividade que lá não há: autonomia produtiva em toda a cadeia de música, com alta capacidade técnica. Era usar isso a nosso favor, e não mais contra. Inclusive porque, no momento em que a Bahia inicia sua tardia, mas célere, Reforma Cultural, em 2007, o modelo pernambucano começa a fazer água, por excesso de dependência do governo e pouco empenho do capital privado. Isso desde então dizemos Pedro Alexandre Sanchez (São Paulo), Idelber Avelar, (Minas Gerais e Luisiana), André Egg (Paraná), Bruno Nogueira (Recife), Luciano Matos e eu. Alguns dos críticos, modestia a parte, mais atuantes da nova geração. Ou somos todos um bando de imbecis?!
Porque a Reforma Cultural Bahiana não se tratava apenas de matar o Axé-System (já estava autofagicamente moribundo), mas de resgatá-lo democraticamente (impedindo a tirania de qualquer gênero ou área), de reaproximarmo-nos de Pernambuco sem subserviência colonial, e de superar o carlismo a tal ponto que se supere o antagonismo a ele. Mas passa também por matar uma geração intelectual velha e paralítica, que só sabe enxergar pelo retrovisor (quando não cai na cegueira mesmo), de que Zulú faz parte – mas que Gilberto Gil e Marcio Meirelles e Albino Rubim, seus coetâneos, não fazem. Mas que jovens até mais novos que eu fazem, xiitas de camisas preta que são.
E aliás, onde estava Zulú nos duros anos em que resistimos ao Carlo-Axé-System, e começamos a custurar no “antes à noite confiada” a coisa dada a aurora (aurora que Zulú, velhaco, não consegue ver, talvez por algum tipo de catarata moral), aquela que não “era (mais) só um lado do mundo / (não) era só esse que eu via“? Ah, sim, em Brasília. Entendi…
P.S.: Curioso que a Terra Magazine, que tanto apoiou a Reforma Cultural Bahiana nos piores momentos, dê guarida a um artigo deste calibre de desapego a realidade objetiva. Mas não deixa de ser explicável. Como já dissemos, não existe “Jornalismo bom” – todo Jornalismo é crime de paz e tende ao des-jornalismo. Seja ele de esquerda ou de direita. Aqui se pratica Anti-Jornalismo, no sentido em que se diz Anti-Psiquiatria: autonomista e autonomizante, dos sujeitos que vivem o real da rua, e não as masturbações mentais de gabinete.
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