O Som das Sextas – XXXIII
Descendo o Vale do Paraguaçú,
como o Batalhão dos Periquitos na Guerra de Independência
Num certo sentido, o Sertanília vem colocar a Bahia tardiamente pari-passu com a proposta Armorial do Grão-Pernambuco dos anos 1970, de fazer uma música (e uma cultura em geral) camerística erudita a partir de nossas bases populares rurais – uma vez que, no que toca o ambiente urbano de Salvador, a Orquestra Afro-Sinfônica já vem fazendo. Há contudo uma diferença entre o Sertanília e as orquestras nagô urbanas fruto do “efeito Rumpilezz”: estas são claramente modernistas no sentido smetakiano e widmeriano do termo; já o Sertanília é claramente medievalista e, ouso dizer, quase celta.
O que não quer dizer um conservadorismo reacionário – antes, pouca coisa pode mexer com o status quo cultural da Capital, Região Metropolitana e Recôncavo do que uma música que afirme, desde o Planalto da Conquista e do Médio Rio de Contas: “o sertão é outra coisa do que se vê e se imagina”. Lembremos que estas regiões da Bahia, de formação mais autóctone e protestante, “questionando portanto o moralismo católico da capital” no dizer de seu filho Wally Salomão, gerou o subversivo Glauber Rocha – além dos profundíssimos conservadores (daquele conservadorismo que questiona a modernidade do capital com um historicismo quase Congresso de Viena) Xangai e Elomar.
Esta região sudoeste que é quase Minas Gerais, até mesmo no sotaque e no frio constante – mas que, através do município de Caetité, aderiu rapidamente ao levante de Cachoeira contra as tropas de Madeira de Mello, e produziu com seus ferros os canhões para libertar a Capital do julgo português em 1823. Anderson Cunha, compositor do Sertanília (e que fez das poucas boas canções do auge do Axé-System, A Festa, com clip gravado por Ivete Sangalo no saudoso Candeal Gueto Square), é justamente nativo desta cidade histórica.
Não é que o Sertanília seja mera recriação erudita medievalista da cultura da face sul da Chapada Diamantina; mais do que isso, há camadas rítmicas em suas canções que remetem ao mesmo tempo ao maracatú, ao côco e ao ijexá – ijexá não de Salvador, mas do Recôncavo. Isto é: das margens direitas do São Francisco, da bela cidade neoclássica de Barra, e porque não dizer mesmo da fronteira “achinesada” (no dizer de João Guimarães Rosa) com Goiás, o Sertanília desce desde depois de onde nasce o Rio Paraguaçú (o palco da independência, a linha que alinhava este estado metonímia da nação), até onde ele desagua (e forma a maior baía do mundo).
Ao mesmo tempo, o eruditismo-camerístico popular-sertanejo medievalista, não exclui, como no movimento recifense de Ariano Suassuna, o rock. Apresentaram-se nas prévias (Fervura) do Festival Feira Noise, semana passada, a que fui; lá alguns conhecidos me perguntaram se Sertanília era rock. Eu dizia que não, contudo não me soava bem dizer isso. Ora, Sertanília é rock, no sentido em que Jim Capaldi disse: “Tambores de Minas, de Milton Nascimento, é rock (tanto quanto Jethro Tull, acrescentaria eu). E se vocês discordam, sinto muito: vocês não entendem nada de rock“. Claro, não há guitarras no Sertanília, mas o violoncelo faz as vezes dos riffs; e eis aí mais uma prova de que o Pós-AxéSystem não pode ser uma questão nem meramente de um só estilo, e sim de vários em conluiu (samba, regional, pagodão, erudito, rock), nem só da urbanidade de Salvador, senão de sua relação, enquanto Capital, com seu profundíssimo interior – sem quem, num certo 2 de Julho, ela não teria sido libertada e seria, até hoje, uma “Macau Ocidental” ou uma “Guiana Portuguesa”.
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