Tolkien – uma ética para o nosso tempo
“Não matou os outros deuses
o triste deus dos cristãos:
Cristo é um deus a mais
talvez um que faltava
(…)
Os deuses são os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por nós,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propósito casual.”
Ricardo Reis, Odes
Para André Egg, que insiste em ser protestante
Como uma notável contradição, o crescimento do Neo-Pentecostalismo Evangélico mais ignorante e intolerante no Brasil e no mundo, ocorre no mesmo momento (e ao que tudo indica com quase as mesmas pessoas) em que cresce o interesse pela literatura de fantasia, tradição marcadamente anglófona – e que, como sabemos, tem seu ápice em John Ronald Reuel Tolkien. Já se disse inclusive que o mundo dos leitores em inglês se divide entre aqueles que já leram Tolkien e aqueles que um dia irão ler. Isto é: até mesmo Shakespeare não é irretorquível, mas do velho linguista ninguém escapa.
Esta coincidência se manifesta em forma de vários paradoxos: a literatura de fantasia inglesa se pauta numa cultura pré-cristã e mesmo anti-cristã, embora tão medieval quanto o Pentecostalismo atual; ela só pode surgir no país que primeiro rompeu com o catolicismo, a Grã-Bretanha, mas tem seu auge com um escritor católico papista, que é Tolkien; a fruição da literatura de fantasia depende da livre consulta, que é do cristianismo protestante, e num ato de crença (no mundo fantasioso que se lê, costumeriamente politeísta) e de questionamento de qualquer crença (uma vez que o mundo que se vive pode, ou poderia, ser outro: o da fantasia que se lê ou de outra fantasia qualquer).
Neste aspecto, gostaria de comparar Tolkien com seu nêmesis, C. S. Lewis. Lewis, de formação protestante (Anglicana, é verdade, e por isso formalmente próximo da Sé de Roma), só tardiamente, pelas mãos de Tolkien, se converte ao catolicismo – e é a partir daí que vai escrever as detestáveis Crônicas de Narnia. Narnia não passa de uma chatíssima pregação moralista cristianizante, com alegorias óbvias, um mundo de fantasia não apenas inconsistente como paralelo ao nosso. Ao tentar fazer um panfleto de sua fé, Lewis não apenas não faz literatura de fantasia como não faz literatura católica – seus modos são Neo-Pentecostais, típicos, eu diria da Renovação Carismática que nada mas é do que o neo-pentecostalismo vaticanista.
Nisso é o oposto de Tolkien. Muito se questiona como Tolkien, católico, fez uma obra que em nada seria católica – uma teoria da criação do nosso mundo antes do nosso mundo existir, consistente, rigorosa, e criadora ela própria de uma estrutura de crença quase religiosa. E aí está: O Senhor dos Anéis e o Silmarillion são obras católicas, mas não cristãs – no mesmo sentido em que Tolkien, em sua célebre aula O Monstro & Os Críticos diz que O Poema de Beowulf é. Isto é, seus romances prezam pelo rigor da especulação filosófica, inquirição do desejo, riqueza da imaginária – mas não pela idéia do “amor ao próximo” e de “pecado” ou “salvação”.
É verdade, mas ainda é pouco. Hoje fui a um casamento protestante – Presbiteriano, para ser exato. Longe do apelo emotivo fácil dos Evangélicos, o Pastor citou em sua omilia Santo Agostinho (e chamando-o de Santo), Nietzsche (!!) e Marx. A ênfase clara era na materialidade da vida: o casamento é, antes de tudo, uma construção palpável, concreta. Ora, se a ética de Tolkien é especulativa e nisso é católica, ela é também calcada na vida material: não virá nenhum deus auto-sacrificante salvar a Terra-Média do expansionismo do Reino de Mordor e do mal original que é Sauron. Muito ao contrário, a vitória contra estas forças tenebrosas virá de pequenas e comesinhas ações bem humanas dos mais diferentes povos e raças, quase solitárias, materialmente conseguidas, sendo a mais importante delas a menor de todas: um hobbit, a menor das criaturas falantes (e portanto passíveis de desejo), atravessar um deserto com um Anel no bolso evitando usá-lo. E nisso Tolkien traz o melhor do protestantismo cristão tradicional: é do trabalho material que a vida e o mundo brotam, e não de uma adoração prostada a um universo dado como fato consumado. Mais ainda: não existe a possibilidade de eliminar o mal, senão de conviver com o mal, cedendo a ele às vezes, enquanto se tenta não ceder mais do que o inevitável.
Sobretudo, vale retomar, não há em Tolkien um mal absoluto a ser combatido – um Satanás, que vem a ser figura central no Neo-Pentecostalismo atual, católico ou evangélico igualmente. Certo, há Sauron, mas mais ele depende do Anel do que o Anel depende dele. A ética é aquela que nos faz abrir mão do poder, do gozo; tendo acesso a ele, dizermos “Não”, e preferir destruí-lo. A ética, é, enfim, do desejo, das ações, do caso a caso – e que só pode ser realizada, concebida, e até negada, por seres que têm “o dom de um dia virem a morrer” (e por isso mesmo invejados pelos “filhos diletos de Erú-Iluvatar”, os elfos, que, acima do bem e do mal, anteriores aos mesmos, são capazes – quase nunca nos lembramos disso – de uma cruel indiferença, inclusive para com seus semelhantes, apesar dos esforços de guerra que ajuntaram aos outros povos – “povos, e não meramente raças” nos lembra Tolkien em sua conferência Inglês & Galês – no final da Terceira Era. Esforço ajuntado que não foi sem interesse, uma vez que almejavam voltar, como voltaram, para Valinor).
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