O Som das Sextas – XXXII
Abordar o específico do cancioneiro de Manuela Rodrigues se coloca para mim como uma dificuldade, menos enquanto crítico, mais enquanto psicanalista. A rigor, deveríamos chamar de impossibilidade – o impossível de responder, com Freud, “o que quer uma mulher?” (porque, lembremos, de mais de uma não se pode falar – enquanto dos homens se pode falar coletivamente, em massa).
É verdade que sua obra é idiossincrásica do ponto de vista formal: a um só tempo música erudita e samba, música eletrônica e bossa – o que leva a Jarbas Bitencourt chamá-la de “choro progressivo”. Mas a questão que coloco é mais além (ou mais aquém), e não se trata tampouco de conteúdo temático (embora passe também por ele). Trata-se de a-causa (o que em psicanálise se leria como “A-barrado” causa – a causa não-todo a dizer).
Meu primeiro contato pessoal com Manuela se deu em um dos primeiros Encontros de Compositores do Teatro Vila Velha, em outubro do ano passado. Perguntei-lhe então, admito que com ares de esfinge, se haveria uma canção especificamente feminina – uma vez que o universo de compositores populares é masculino e de intérpretes é feminino, mas ela própria é mais compositora do que interprete. A princípio ficou meio atordoada, como quem tenta balbuciar uma resposta, tateia e não encontra significantes (o que deveria ser óbvio: o significante de A Mulher não existe enquanto inscrito no inconsciente). Daí, tive de construir com ou para ela uma resposta: “talvez uma canção que não fosse ostentação fálica, mas uma tentativa de grafar o Outro gozo”. Como Manuela é familiar a certo vocabulário da psicanálise, consentiu: “é isto mesmo”.
Existe uma arqueologia possível do cancioneiro feminino no Brasil – especialmente se lembrarmos que a precursora do formato-canção, ainda no 2º Império, era uma mulher: Chiquinha Gonzaga – muito mais do que Alberto Nepomuceno ou Zequinha de Abreu. E nela se pode até constatar uma brejeirice imaginariamente feminina, que no entanto não representa diferença de causa, estrutura ou significação em relação ao cancioneiro dos homens, inclusive pela ausência de letra. Depois, em meio a Era Vargas, com as divas do rádio, surge uma que cantava menos do que compunha: Dolores Duran.
Em Dolores, sim, aparece algo específico do simbólico da feminilidade: o fato de que uma mulher só é representada para um homem – se as mulheres querem uma significação (é a resposta freudiana a pergunta “o que querem?”), ela só pode vir do fato de serem desejadas por um homem. Posição esta, de serem desejadas, bastante masoquista (e lembramos, novamente, com Freud que falar em mulheres masoquistas é uma redundância, uma vez que a própria falta fálica as coloca em condição ônticamente masoquista), o que Dolores Duran retrata são mulheres em uma posição de submissão abandonada e amorosa ao desejo de um homem. Propriamente, o eu-lírico de Dolores é o da mulher que aceita ser A Outra, a amante, a que está em segundo plano porque ocupa o lugar apenas de objeto de desejo, e não do matrimônio.
Bem depois, nos anos de abertura do último regime militar, surge Tetê Spíndola (que hoje influencia involuntariamente a excelente Tulipa Ruiz). Para além da curiosidade escrachadamente engraçada de sua voz em sopraníssimo, seu visual estrambótico e de tocar alaúde, Tetê compunha e muito! – e de um lugar feminino. Agora de uma mulher que não mais aceita um lugar secundário e submisso do desejo de um homem; a voz poética de Tetê Spíndola exige, mais do que meramente demanda, gozo de seus parceiros amorosos. É ainda uma mulher que só se representa a partir de um homem, mas em posição ativa, e por isso ainda mais histérica, uma vez que falicizada – que “caça como um homem”. Tetê mantém, contudo, um traço de união com Dolores: o apelo ao cafona, ao brega, a estética de rádio AM re-elaborada sofisticadamente.
Nos anos 90 surgem uma gama de interpretes e compositoras femininas lésbicas – tendo seu maior ícone em Cassia Eler, uma George Sand do nosso tempo. Neste rol, não incluo Adriana Calcanhoto que, embora componha eximiamente, nada tem de específico da feminilidade (sequer da homossexualidade feminina) em seu cancioneiro. A homossexualidade das mulheres, lembremos, também é um sintoma histérico: uma tentativa de se re-posicionar na lógica fálica dos significantes (dispensando, justamente, o falo, que é substituido integralmente pelo amor; ou emulando o desejo masculino, sem um pênis) e de representar o gozo de A-Mulher (aquele que é por definição foracluso do inconsciente – e que aparece, porém e por isto mesmo, nos psicóticos de ambos os sexos). Nisto se destaca Ana Carolina: apesar de uma obra que reputo simplória e tecnicamente questionável, é nela que a feminilidade enquanto homossexualidade (emulação imaginária da masculinidade) comparece com toda clareza, a custo inclusive de eliminar metáforas.
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Em Manuela Rodrigues a questão já é de todo diferente. As mulheres, em primeira pessoa, comparecem na sua lírica representando-se independentemente dos homens; o que há de feminilidade aí é justamente a questão de “o que é uma mulher, uma vez que agora as diferenças de gênero não mais existem, mas as de sexuação sim?” (e nisto segue a trilha aberta por Rita Lee, em canções como “Cor de Rosa-Choque” e “Ovelha Negra”). E daí que ela pode se questionar: “Moça de família / (…) / e quem foi que tirou minha honra?“; identificar-se como “Eu, profissional liberal / dona do meu umbigo / em que botei um piercing / pra fingir que não ligo pra idiotice“; e que não tem vergonha de ser “O tipo de mulher / barraqueira que apronta“.
De alguma forma, esta ambiguidade aparece no mesmo corpo de Manuela Rodrigues: rosto de criança e jeito de adolescente, mas muito senhora-de-si quando se chega perto; mulata, de tranços bem europeus; vinda de uma família de intelectuais acadêmicos e com formação em canto lírico e operístico, mas ligada ao samba. Entre as etnias, entre os gêneros musicais, entre identidades etárias e de época, e entre o lado de fora e de dentro da sexuação, re-significando-se a cada nova canção – porque A-Mulher enquanto significante universalmente foracluso, o Outro Sexo, só pode aparecer no interdito entre um significante e outro.