Grafação, Letramento e Meta-Alfabetização
ou: Endo-Poliglossia para Glossófobos
A balbúrdia midiática que começa a se alevantar em torno da decisão (acertadíssima e já não era sem tempo), do Ministério da Educação, de ensinar as Variantes Orais da Língua Materna pari-passu com a Norma Padrão assusta menos pelas manchetes desconectadas do corpo do texto (como é comum no Des-Jornalismo contemporâneo), e mais porque mesmo gente dita “de esquerda” continua com nojinho da plasticidade com que os pobres se autorizam a usar sua língua.
Antes de mais nada, vamos colocar alguns princípios:
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O que a escola ensina não é a Língua Materna, uma vez que a criança chega a sala de aula falando fluentemente o Português Brasileiro (provavelmente em mais de uma variante); à escola cabe ensinar o letramento e a grafação do idioma (isto é, alfabetizar – e eventualmente meta-alfabetizar, que é o que o MEC passa a propor);
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O MEC não está propondo, em momento nenhum, despriorizar o ensino da Norma Padrão;
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Norma Padrão que, ao contrário do que a glossofobia brazuca a la gauche et a la droit pensa, não é a Norma Culta (e esta confusão não é em nada acidental: embora seja involuntária, é politicamente causada, interessada e endereçada);
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a Norma Culta seguirá sendo ensinada nas escolas, enquanto uma Variante Oral da Norma Padrão, entre outras. Porque, de um ponto de vista da Norma Padrão, a Norma Culta também é “erro de português”, na errância estatizante-em-causa-própria das elites culturais (salve-salve Ana Bruaca de Hollanda, Ministra dos Artistas Sulestinos!);
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o que muda é que as gerações vindouras, diferentemente dos intelectuais glossófobos de hoje, saberão que Norma Padrão e Norma Culta não são sinônimos.
Isto posto, vamos a parte menos óbvia da querela: a idéia renitente e rançosa de Estado Tutelar Brasileiro. O Estado Brasileiro se autoriza a ditar como seus cidadãos devem transar (“Use Camisinha!” – isto é: sexo, só se for genital ou, no máximo, anal; prevenção de DSTs por sexo sem penetração? Só se for na Holanda!), como devem se divertir (“Drogas, tô fora!” – salvo se for cerveja ruim, e gelada, para embebedar pedreiros e porteiros quando em suas propagandas vendem sexo e liberdade, que evidemente não entregam), como se locomover (ônibus, metrô, carro ou moto – porque pedestre e bicicleta, a real liberdade de ir-e-vir materializada em ato, só se for na Holanda!) – e, por outro lado, o Estado Brasileiro cumpre pouco do que deveria cumprir, constitucionalmente. O Brasil aderiu ao panóptico muito antes de entrar no Iluminismo Burguês – mais uma pra lista das “idéias fora de lugar”, Prof. Roberto Schwartzs!
Isto se reflete na idéia de que os pobres não podem aprender nada sobre variações de seu próprio idioma – “isso atrapalha a alfabetização”!, “vai confundir a cabeça deles!”, “eles vão continuar alijados do acesso a alta cultura e altas rodas sociais, uma vez que não usarão da Norma Culta”. Ora, alguém me explique como e porque aprender variantes a mais geraria indivíduos com habilidades idiomáticas a menos?! Se assim fosse, crianças cuja criação foi bilíngue ou multilíngue apresentariam mais dificuldades no letramento que as outras, e na verdade apresentam menos (embora, é verdade, saiam da lalação para a organização frasal um pouco mais tardiamente que seus pares monolíngues).
O que está por trás dessa idéia é a de que os pobres não podem ser autonomizados: não podem ser senhores de sua língua, de seu desejo e de seu deslocamento. “Sim, a sociolinguística está certa, mas é melhor ensinar só na Norma Culta”; “Sim, a psicanálise está certa, mas aos pobres só devemos dar terapia de grupo” – isto é: o direito à subjetividade e ao inconsciente segue sendo uma prerrogativa de classe; “De bicicleta eles vão andar na contramão porque não conhecem o Código Brasileiro de Trânsito, é mais risco pra todo mundo” – e claro, deixemos eles dependentes do buzú enquanto nós ficamos dependentes do automóvel.
Leve-se em conta que tais afirmações são projetivas: os intelectuais que assim se colocam, são poliglotas em línguas estrangeiras mas não “poliglotas em sua própria língua”. Para dizer melhor: alfabetizados em diversos idiomas, não são meta-alfabetizados em nenhum! – nunca aprenderam a refletir politicamente sobre as línguas que usam porque, oh!, isso nunca lhes foi ensinado e é isto que o MEC quer ensinar agora. Horror! Onde já se viu pobre politizar a enunciação (e não apenas o enunciado) que enunciam, e a enunciação que ouve dos outros?! É o fim dos tempos! Os intelectuais de esquerda-pero-no-mucho, que agora saem do armário do preconceito linguístico com discursos caridosos de “proteger os pobres de si mesmos, de sua própria língua”, em geral não sabem a diferença entre Enunciado e Enunciação (como também ignoram, já disse, a diferença entre Norma Culta e Norma Padrão); e mais ainda, Lulistas, não se deram conta de que o ex-Presidente da República foi o maior “poliglota em sua própria língua” que Celso Pedro Luft jamais viu na vida, e é nisso que reside quase todo seu talento político, sem dúvida admirável. Para eles, Lula é gênio apesar de “falar errado”, e não justamente porque “fala em diversos níveis de variações de um mesmo idioma: da Norma Culta aos dialetos regionais”.
O que se pretende é democratizar ostensivamente esta habilidade do ex-Presidente, e não por causa dele – além de democratizar também o direito a inventividade linguística, que não é, ou não deveria ser, um privilégio de classe dos poetas e escritores. Afinal, as escolas privadas da medioclasse já ensinam socioliguística para seus alunos, inclusive porque isto é cobrado nos exames vestibulares das grandes universidades públicas do país. O filho do rico pode saber que toda forma de enunciação é política; aos filhos do pobre, a alienação linguística.
Há também o argumento de que a meta-alfabetização seria boa, mas deveria ser uma fase posterior ao letramento – se for concomitante, atrapalha. Não tem mentira mais deslavada, para quem quer que conheça o método de Paulo Freire, que justamente propõe letramento e meta-letramento simultâneos. Mas, pelo visto, a esquerda brasileira gosta muito de Paulo Freire na teoria – posto em prática como política de um Ministério, entram em um pânico, digamos, higienópolismente diferenciado.
Pós-Escrito: Alguém vai dizer “você é proustiano e elitista, como pode defender o ‘falar errado’?”. Pelo mesmo motivo que Marcel se encantava com todos os tropeços de fala da sua ama-seca, Françoise, em cuja forma de enunciação ele via em vivo formas muito arcaicas, um francês carolíngeo e merovíngeo que daria origem a rica poesia provençal, aos villanelles de que Marcel tanto gostava como pilriteiros brotando; e ao mesmo tempo era no deslize das variações orais da criadagem que Marcel via brotar o francês urbano, marginal, de rua, próprio dos prostíbulos homossexuais da Reforma Hausmanniana. Qualquer língua viva é mais rica do que esta língua sepultada em vida e morta por emparedamento, como uma Antígona sacrificada para manter a pureza da Casal Real de Tebas que se tornou a Língua Portuguesa para os que dela se acham dono (talvez por a terem comprado, talvez porque especulem com ela). E pra quem acha que isso não se aplica no Brasil, o que são então as obras de Ascenso Ferreira e Patativa do Assaré? Não fazem eles parte do nosso cânone literário? Deveriam sair dele – ou, antes, não deveriam entrar a não ser pela porta dos fundos, usando o elevador de serviço?
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