esforço de um Malogro profissional
Já tem tempo que tem me irritado certo elogio da dita crítica musical baiana (em sua maioria formada por jornalistas que não sabem que Vladimir Propp existiu, e conhecem Theodor Adorno por orelhada de apostilas de graduação) a banda Maglore. Contudo, eu evitava falar a respeito. Primeiro porque considero tão irrelevante que o melhor é ignorar que existe, e não falar deles sequer pra falar mal (é o que um destes jornalistas culturais, a quem aliás admiro e respeito, Luciano Matos, diz a respeito do Restart). Porque pra mim a Maglore não passa disso: um Restart “à esquerda” – não porque eles sejam de esquerda (na verdade eles nem sabem o que são), e sim porque seu público e seus apoiadores intelectuais vêm do Anti-Axé.
Sua existência é tão desimportante quanto inofensiva – o que não é inofensivo é o “muito barulho por nada” que se faz ao redor destes rapazes. É isso que preocupa: a dita crítica parece ter perdido a criticidade. Qualquer coisa vale no Pós-Axé, por mais inconsistente que seja, desde que seja uma banda “esforçada” e “profissional” – diz o jornalismo cultural bahiano e a produção cultural que cresceu sob a Era Marcio Meirelles. Esse elogio do profissionalismo, conquanto seja benéfico ao Anti-Axé até certo ponto, está na medula óssea do Axé-System, devemos nos lembrar – e da indústria fonográfica como um todo (alguém duvida que Luan Santanna, essa irrelevância de Marília, é “esforçado” e “profissional”?).
Da única vez que vi a Maglore tocar ao vivo foi encerrando um show da Formidável Família Musical, já exilada no Rio de Janeiro, que ocorreu na Boomerangue quase um ano antes de ela fechar. Ou seja: estou dando o desconto de que, talvez, naquele momento, a Maglore fosse imatura e não tivesse ainda um repertório autoral ou interpretativo próprio. Porém, ressalvo: o primeiro show da TenTrio, por exemplo, tinha um uso de palco tão ruim que parecia ensaio – mas o som era de uma vitalidade e personalidade impressionantes. E olhe que eles não têm letra, posto que fazem apenas instrumental.
Pois bem, neste show que vi da Maglore ela ocilava entre um grupo de crooning para baile de debutantes e um cover dessas bandas de pop-rock (que no fim da conta são de axezão rasteiro e radiofônico mal-disfarçado) que tocam em boates de mauricinhos da Pituba (carrófilos e que deliram que o Pelourinho está abandonado, embora não passem num raio de 5km de lá desde que nasceram).
Posteriormente, quando eles lançaram seu disco, comentei no twitter, com muita parcimônia, que eu tinha restrições a Maglore e que precisava ouvir mais ao vivo, e estava disposto a tal. A reação de Teago, seu vocalista e compositor, foi a pior possível: chegou mesmo a dizer que o papel da crítica é irrelevante no processo de construção autoral, de recepcão do público e de Reforma Cultural do Estado. (Notem: quando a “crítica” lhes elogia, ela não é irrelevante. Notem: são os únicos “autores”, e nem digo só da Bahia, a pensarem assim hoje, uma vez que artistas e produtores ativamente buscam a análise dos críticos – desde as orquestras eruditas até os sambistas. Como aliás soe de ser em qualquer período estético fértil).
Que fique claro que não considero que a Teago falte talento: uma vez no Encontro de Compositores do Teatro Vila Velha ele mostrou um ijexá muito bonito; em outro, uma canção que ele queria que fosse bossa nova e não foi, depois frevo e não foi e ele não sabia o que era – na verdade, era uma levada-axé bem a estilo de Rónei Jorge e do Suinga (nada a ver, portanto, com o axezão zumbi privatista). É aí que reside o problema: seu talento não tem rumo. Talento é apenas energia, no sentido newtoniano do termo: capacidade de realizar trabalho. Bem direcionado, é profícuo e eficiente como uma bicicleta ou um trem; mal direcionado, é um disperdício idêntico ao de um automóvel. Se talento não falta (embora não seja muito), falta projeto estético (isto é: também político).
Teago não apenas parece desconhecer como direcionar melhor seu talento (muito porque público e “crítica” o blindam com o discurso do “profissionalismo e esforço” – esforço como se vê meramente braçal, alienante e alienado, uma vez que não é reflexivo nem autocrítico), como ele parece que não quer saber: é a ignorância como definido no dialeto bahianês – “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”. Num destes Encontros do Vila Velha falei-lhe sobre como Letieres Leite me explicara que ijexá não é um gênero, mas uma família de gêneros tal qual o samba, o frevo e o bumba-boi; Teago ouviu com relativo desdém. Em outro episódio, falei-lhe que sua tal levada-axé poderia ter virado um frevo-de-bloco, lírico e minuetado, mais próximo da bossa nova – resposta: “É que eu não ouço esse tipo de coisa, só rock”, o que eu complementaria mentalmente “rock radiofônico, você quer dizer…”. Ainda neste mesmo dia, tentei abordar peculiaridades estéticas com ele por exemplo do Retrofoguetes e da Rumpilezz: suas respostas, num misto de arrogância e indisfarçável insegurança, foram mitificadoras do tipo “são gênios, e por isso inanalisáveis”, o que além de paralisante para ele e inviabilizador do debate é uma falácia: ambos os grupos se submetem sistematicamente a avaliação crítica e pedem por ela – inclusive comigo.
Talvez esta empáfia da Maglore advenha justo do elogio excessivo (e vazio e irrefletido) que o jornalismo e os produtores (e não a crítica!) vem fazendo a eles: tornaram-se crianças mimadas. O que aliás talvez tenham sempre sido. Uma das piores características da Maglore é sua falta de identidade com Salvador, e com a Salvador da Reforma Cultural. É uma banda digamos “international style”. Não por acaso: seus membros são do Imbuí e arrabaldes, naquela área em que Salvador não é Salvador. São o que se chamaria, lá na Barra Avenida, de “meninos de playground”.
(Que fique claro que esta crítica, virulenta, que acabo de fazer não visa isolar ou ostracizar ninguém. Se a Maglore for esperta, usa isso como um koan soto-zen e procura mudar de posição. Ou segue me ignorando como crítico, confortavelmente.)
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