As Lições do Mardi

13/03/2011 at 22:52

Para Paulo Miguez, que, segundo consta, também estava na Big Easy


Para Idelber Avelar, Manuela Rodrigues,

e outros tantos brasileiros que escolheram a Cidade Crescente para morar

Axioma: A Luisiana é a Bahia que fala inglês (inclusive seu sotaque é o bahianês americano).

Corolários:

1) Quando Milton Santos nos diz que “o Recôncavo é o umbigo do mundo”, ele se refere a um mundo em específico – o Extremo Ocidente (este lugar inventado pelos escravos negros, que viram a crueldade bem de frente, ainda produziram milagres de fé). Outra forma de dizer: trata-se da América Luso-Francesa, uma vez que a América Espanhola não usou de escravidão africana (com exceção, comprovatória em relação a esta regra, de Cuba) – aquela que vai do Uruguai (ex-Província Portuguesa da Cisplatina) até o estado norte-americano de Georgia;

2) Por algum tempo eu disse que a Reforma Cultural Bahiana tinha por obrigação incitar São Luís do Maranhão a sair do isolamento – tal qual Pernambuco fez conosco nos duros anos da tirania do carlo-axezismo. Errei, por timidez quantitativa: é preciso abraçar o carnaval de Camdonbe de Montevideo, as Antilhas, e chegar até Nova Orleãs – esta espécie de Olinda plana, no sentido em que Olinda é o elo perdido entre Recife e Salvador;

3) New Orleans é uma cidade pobre, que foi destruida por uma catástrofe há cinco anos. E está de pé! Claro que há ainda prédios abandonados, fedor, e certa desorganização. Sua recuperação se deve a um fato: a população se recusou a posar de vítima das circunstâncias. Isso é visível no Museu do Katrina, mas no modo de dizer do dia a dia da população, nos albuns de foto encontrados autografados e com epígrafes em diversos bares e lanchonetes de seu Centro Antigo. É aí que reside a diferença para com Salvador, em que o sub-marxismo de senzala, altamente patrimonialista, ainda impera;

4) Isso vale inclusive no sentido da mobilidade urbana. A de New Orleans, apesar dos bondes (lentíssimos e pouco frequentes, se comparamos com os de San Francisco), sempre foi ruim. Com o desastre, piorou. Mas o uso de bicicleta sempre foi ubíquo, frequente, normalizado (diferente do de San Francisco, que foi construido digamos artificialmente nas últimas décadas, como uma identidade fashion de certa classe média saudosa dos Hippies e do Movimento Gay). Falo inclusive de bicicletas pebas cargueiras domésticas – mesmo durante o Carnaval. Depois do desastre, se alastrou; a prefeitura abraçou a causa (embora com poucas ciclovias, mas com muito compartilhamento demarcado), inclusive incentiva a quem visita a cidade a usar bicicleta. E confesso: senti falta de fazê-lo, embora seja uma delícia de andar;

5) Não se pense que a industrialização gentrificação e motorização do Carnaval é problema apenas de Salvador. O Carnaval de brass-bands de rua em New Orleans não existe mais no French Quartier – é preciso ir até o Faubourg Marigny para acompanhar alguns. Pro lado do Garden, são blocos caríssimos, com carros alegóricos, hora marcada, polícia a disposição, e segregação de espaço público não com cordas, mas com grades. Qualquer semelhança com abadás e camarote não é mera coincidência. Inclusive a polícia eventualmente persegue e pune quem faz bloco de rua, misturado, com jazz-walking-bands – mesmo em um dos quais participei;

6) A diferença é uma vantagem nossa: nenhuma cidade carnavalesca (“efêmera”) no mundo tomou tanta consciência da problemática do embate entre carnaval artesanal X industrial e a privatização do direito a folia quanto Salvador. Por ter sido a mais afetada por isso? Talvez. Fato é que Recife tomou consciência disso antes que acontecesse, e preveniu, mas por isso mesmo tem pouca massa crítica a respeito. New Orleans, que não é uma cidade norte-americana, mas também o é, não se dá conta disso – salvo claro certa esquerda modernosa do Marigny e ByWaters, que ainda mantem os blocos de rua participativos, não obstante enormes e deliciosos. Lá, pela própria tradição de estado desnecessário da nação, não passa pela cabeça de ninguém que a Governança do Carnaval deve ser pública e estatal, fora do espontaneísmo ou de entidades privadas (no caso deles, filantrópicas e beneficientes mas nem por isso menos capitalistas do que as nossas, especulativas). Aqui na Bahia, creio que isso seja consenso: nem o Baronato do Axé-System tolera mais tanta firula de trio-elétrico em frente a camarote, atravancando tudo, como ficou claro em diversos episódios do Carnaval baiano em 2011.