O Som das Sextas – XXIX
Dois decanos dignos de nota
Há uma resistência minha a dois autores fundamentais que articularam, ao seu modo, a transição do Anti-Axé para o Pós-Axé, que creio que já se faz hora de esclarecer. Quando ainda trabalhava em cima do Cartel sobre a Canção, a designer dessa budega insistia que um dos quatro deveria ser Rónei Jorge – “Frascos, Comprimidos e Compressas é canção pura!”. De fato, é – mas sem uma inflexão metalinguística interna (Formidável Família Musical, Thiago Kalu) ou externa (Pedro Pondé com a política, Retrofoguetes com o cinema e a música instrumental), o que me fazia perder o interesse. Luciano Matos até hoje acha absurdo eu considerar que a capacidade de penetração popular e recepção do Cascadura ser menor do que O Círculo (e me refiro sempre, claro, ao Círculo com Pedro Pondé, e não essa coisa interesseira e golpista, sem identidade, que circula pela cidade hoje).
Ambos já teriam o mérito de, surgidos no auge do Axé-Sistem, terem sobrevivido até hoje. Não apenas sobrevivido, mas crescido em público, crítica, produção, qualidade. Rónei Jorge, pra se ter uma idéia, estreou no Teatro XVIII numa era geológica distante em que Aninha Franco não tinha ficado maluca ainda e era amiga de Marcio Meirelles. O Cascadura vem dos bueiros dos festivais de rock em que lamuriávamos ainda Recife estar decolando com o MangueBeat, então uma novidade, e a gente sendo assolado por abadás e cordas – camarote na época ainda era das famílias que os compravam, e não dessas megas empresas especulativas daí.
Mas sempre achei faltar nas canções de Rónei Jorge qualquer coisa de mais sistemática, econômica, Cazuza mesmo – às vezes me parece apenas Legião Urbana bem-feito, sem maior trabalho com o significante enquanto tal, ou com a melodia enquanto tal. O Cascadura tem, sem dúvida, um esmero melódico – que ao meu ver parece repetitivo, esquemático, óbvio mesmo; o mesmo vale para as letras: se são formalmente mais rigorosas, é por seguirem um roteiro previsível, e não por um real trabalho com a imagem acústica das palavras.
E insisto que se o Cascadura tem um público cativo amplo do rock puro-sangue, que hoje se ampliou um pouco para outros campos de recepção, levou algum tempo sem perceber que buscar esse diálogo com outros gostos musicais (o Axé e o pagodão inclusive) era essencial. Isso mesmo quando o Retrofoguetes já engatava o Retrofolia. Na época, Pedro Pondé com O Círculo, e a Formidável Família Musical, já traziam pra dentro do campo do rock fãs cuja origem estava na música popular brasileira, e mesmo no axezão – o que Fábio Cascadura na época criticava. Hoje, felizmente, mudou de posição – e não vejo nisso nenhum oportunismo: seu projeto Sanguinho Novo supriu este ano a lacuna que ficou desde que o Bahia de Todos os Sons (que era por direito de O Círculo, mas executado de fato por Pondé) deixou de existir. Isto é: o Sanguinho Novo fez-se um palco generoso para os mais novos ramos do Pós-Axé, venham de onde vierem, e isso é digno de aplausos.
(Pese-se que a distinção de preferência, claramente dicotômica em Salvador, entre O Círculo com Pondé e o Cascadura seja uma distinção de classe: a sofisticação do primeiro, claramente aristocrática e mais ostensivamente política, contrasta com a origem bem mais francamente proletária do segundo. É também a distinção que havia nos primeiros anos do Regime Militar entre a “música popular engajada” e formalmente conservadora, e o Tropicalismo que seria “ideologicamente alienado” mas formalmente subversivo – O Círculo estaria mais próximo deste último, Cascadura estaria mais próximo do grupo mais conservador, o que se coaduna com a declarada predileção de Fábio pela Jovem Guarda, bem como sua opção por entitular seus últimos discos com nomes praias populares de Salvador: Bogari e Aleluia – ponto em que aliás se assemelha, numa feliz coincidência, com um recente pagodão-suingueira).
Foi justamente no Sanguinho Novo que pude perceber que há uma positividade nisso que vejo como ruim no Cascadura. O Cascadura é uma banda de pirôbos, de canção de amor mela-cueca, radiofônica e com um flerte com a música cafona de rádio AM – quer dizer, é tudo o que faltava num show de rock. Lembro no início do Anti-Axé se dizia que em show de rock não era possível paquerar porque quase não havia mulheres e as canção (?) não propiciavam isso – até a Banda Cissa Guimarães tem música sacaneando com isso. Pois bem: com o Cascadura, tornou-se. Foi começar o show deles no Sanguinho Novo, e os beijos, mão na mão e flertes começaram – doces como em festa de debutantes.
De Rónei se pode dizer algo similar: a tristeza nerd que o Legião Urbana tentou cantar, e não conseguiu (porque era péssimo!), era uma parte constitutiva do Anti-Axé que ainda não havia ganhado voz. Mesmo em Pernambuco o pós-Mangue pode fazer surgir uma banda que junta o brega de prostíbulo a nerdice, o Mombojó. Rónei talvez seja a resposta bahiana a isso. E se o Mombojó trouxe de volta pro frevo o nerd pernambucano, foi com Rónei Jorge, compondo um axé-music encubado como Aquela Dança, que os óculos quadrados (re)aprenderam a rebolar na avenida pra desgraça e glória desta vida.
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