Salvador, capital Estocolmo
Um calor da disgraça (com i mesmo), um sol que anima as cores – me fazem retomar aquela mostração de como o desconformo termo-climático de Salvador não é obra da natureza, de deus ou de exú, e sim uma escolha política.
Políticamente causada em especial pelos automóveis: para abrir pistas, retirem-se árvores e asfalte-se o solo; para combater o desconforto térmico gerado por isso e por um mar de motores ligados sem se moverem, ar-condicionado (aumentando por sua vez o calor externo); para que de dentro da cápsula de metal o sujeito consiga ver o letreiro de certo estabelecimento comercial, sua fachada tem de estar forçosamente nua. E, sabemos: nada está mais intimamente ligado a automóveis do que Shoppings Centers.
Shoppings Centers só proliferam onde o comércio pedestre, de rua, morreu; em locais muito pedestres Shoppings podem sobreviver, mas como um ente de interesse entre outros (como o Shopping Barra, em Salvador, que funciona mais como uma praça entre o Chame-Chame e a Graça; ou os Shoppings do Leblon e da Gávea, no Rio de Janeiro, mais galerias entre charmosas aleias, ou o Conjunto Nacional em São Paulo, uma passagem ligandoa Alameda Campinas a Avenida Paulista). Shoppings são a privatização do direito de andar, para os quais o acesso é garantido preferencialmente aos que excercem a concessão de dirigir.
E não venham me dizer que o Salvador Shopping tem boa oferta de passarelas: é isto mesmo o sintoma de que ele não é nada acesível ao pedestre. Em que bairro, exatamente, ele fica? Em nenhum. Seus bairros mais próximos, Pernambués de um lado e Caminho das Árvores de outro, ficam a pelo menos 1km de distância dele – 1km em que não há nada, não há comércio de rua, habitação, nada! – apenas um entroncamento rodoviário barulhento e fedido que a nova medioclasse pós-pitubana acha bom de morar “com 52 ítens de lazer no playground” (e nenhum deles por óbvio é o Pelourinho ou o Teatro Castro Alves…).
Apesar do isolamento topográfico e da parca vegetação externa (num Shopping que se gaba de ser “verde” por reciclar toda sua água e usar ao máximo luz natural), dentro há uma vegetação razoávelmente farta. Na verdade, o prédio é uma clara homenagem a arquitetura do Hospital Sarah, logo em frente e para o qual dá vista, de João da Gama Filgueiras Lima, Lelé. Na verdade, uma homenagem às avessas: o que em Lelé é uma reflexão pragmática sobre relação dentro fora e uso inteligente de energia, bem anterior a qualquer modinha eco-chata, no Salvador Shopping se restringe a traços miméticos: uso de luz natural sem nenhuma ventilação natural, o oposto dos shades e estruturas em cascas do autor bahiano por adoção.
(Aqui, a piada de “para um frio sueco” não é gratuita: é sabido a influência que o escandinavo Alvar Aalto teve sobre Lelé – que soube adaptá-lo a realidade tropical, como fizeram Diógenes Rebouças e Lúcio Costa com Le Corbusier. Por óbvio, não acontece no citado Shopping, que vira um pastiche em marcha-a-ré).
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Pior mesmo é quando o estabelecimento tenta vegetar-se externamente, evitando vagas de estacionamento, mas o faz imitando o estilo afrancesado dos jardins aparados de Versalhes.
Evidentemente que isto reduz o calor refletido do solo, mas sob pena de retirar amplos espaços pedestres – e sem fornecer nenhuma sombra: de novo, o patológico horror ao encobrimento de fachadas por vegetação.
Horror infundado, ao nosso ver, o que podemos provar empiricamente a partir de um exemplar: o Shopping Boulevard 161. Ricamente vegetado, inclusive com jardins verticais, escondido sob casuarinas, sem qualquer ornamento de fachada (aliás de tijolo exposto que nos leva, junto com suas soluções vazadas de dentro-fora, a supor que seu autor possa ter sido Assis Reis – é notável a semelhança deste com o prédio da CHESF na Avenida Luiz Viana Filho, bem como a admiração de Assis por alguns dos poucos prédios residenciais modernistas-tardios da área do Itaigara, como o simples mas correto e belo Solar das Mangueiras).
É um dos poucos equimamentos comerciais da região do Caminho das Árvores que não se desvirtuou, nem decaiu sua qualidade e intensidade de uso, em duas décadas. Ao contrário: enobreceu-se. Isto porque, apesar de arrodeado de estacionamentos numa área pouco pedestre em que as zonas residenciais ficam estritamente apartadas das comerciais, é um convite ao deslocamento pedestre. Com diveras entradas em pé-direito alto, e sem porta e com ventilação natural, vira um calçadão comercial sem com isso privatizar o direito de andar ou excluir o caminhante da rua (uma vez que o Boulevard 161 se emenda diretamente com as calçadas de seu entorno).
Este sistema de abertura, com farta vegetação externa e interna, em paredes, cascatas e solo, garante não apenas conforto climático, como também acústico: protege-se do barulho das ruas, sem se tornar uma caixa de ressonância para vozes humanas desencontradas, como costumam ser os Shoppings – o Boulevard 161 ao invés de ter aspecto de caverna artificial, opta pela metáfora botânica, mais aconchegante. E mostra, com isso, que não sucumbir ao Rinoceronte Motorizado pode ser melhor negócio do que gerar desforto ambiental em nome de ter letreiros garrafais em frontispícios desnudos e cafonas.
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