Teorética & Práxis do Anti-Jornalismo – nº2
Fato, Notícia, Interpretação e Verdade
O Jornalismo é o dispositivo pelo qual, num modelo industrial de negócio, se transforma a matéria prima (o Fato) em mercadoria (Notícia) numa produção em série. Esta mercadoria só tem seu valor de troca garantido pela suposição de Verdade (“factual”) que atribuímos a ela – embora seu valor de uso esteja em proporção inversa a isso: quanto mais se é Notícia, menos fidelidade para com o Fato e menos Verdade porta. Nisso a notícia não se difere de nenhuma outra mercadoria – de um carro, por exemplo, que vale tanto mais a partir de sua potência virtual atribuída quanto menos realização de deslocamento (eles causam congestionamentos…) é capaz de factualmente realizar.
O problema se dá na particularidade do trabalho do Jornalista. Sujeito partido ao meio, tem o imperativo da verdade factual de um lado, e da produção celeremente fordista de notícias de outro. O mais provável, diante deste dilema, é que não consiga produzir nem uma coisa nem outra: nem notícias aos borbotões, nem notícias com alto grau de integralidade factual. Isso explica em parte como o Des-Jornalismo atual é consequência inevitavel da existência do Jornalismo ele mesmo enquanto prática discursiva – e que Jornalistas da velha guarda como Mino Carta apregoem um “retorno ao modo antigo de fazer jornalismo, com fidelidade canina a verdade factual” nada mais é do que um bucolismo pseudo-aristocrático, uma fantasia na qual a Idade Industrial seria reversível e poderíamos todos ter uma casa no campo & muitos rocks-rurais.
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Há, contudo, ainda, um mal-entendido inescapável na relação entre Verdade, Fato e Notícia. Dissemos acima que a Notícia é uma perda (mais-valia) da densidade de Verdade dos Fatos – é uma afirmação válida, mas imprecisa. Há dois conceitos de Verdade aqui em jogo: a verdade como “relato mais ou menos fiel dos fatos” e a verdade como “a descoberta, ou entendimento, do que causou os fatos” – esta última só é alcançada através da Interpretação, função que teoricamente é inalienável do leitor. Isto é: o Jornalista não a poderia fazer por ele.
“Poderia” e “teoricamente” porque a pós-modernidade é capaz de fazer acontecer os impossíveis da mediocridade (o que Cristóvão Feil gosta de chamar “lumpenzinato”). O surgimento dos chamados “Âncoras” na TV americana dos anos 1970 marca a arqueologia desta transição: um Jornalista que é pago não para produzir Notícia a partir dos Fatos, mas para Interpretar a Notícia em nome do coletivo de leitores – colocando-os em total passividade arreflexiva, alienação em segunda potência (dos Fatos e da Verdade a que se chega interpretando estes).
O Des-Jornalismo não apenas aliena os leitores dos meios de produção e de suas escolhas de consumo, como também o Jornalista numa posição de “especialização flexível” francamente toytotista: aquele que sabe fazer tudo, e por isso nada sabe fazer realmente. O Des-Jornalismo é assim o Jornalismo (enquanto prática discursiva) levado às últimas consequências, coetâneo inevitável do neoliberalismo, levando seu sistema ao paroxismo de suas contradições.
Também nisso o Jornalismo é hoje o que foi a Psiquiatria nos anos 1970. A título de gerir totalmente a vida do louco (“secretariar o alienado”) a bondade psiquiátrica não o deixava viver sua loucura, salvo aquela que a Psiquiatria lhe impunha: a do hospício. A título de bem-informar (“a ética do jornalismo”), o Jornalismo impede sutilmente o leitor de viver suas Verdades, seus Fatos e suas Interpretações: nada existirá na sua realidade mental, senão a realidade da Notícia. Como todas as outras mercadorias, a Notícia alcança assim o status de fetiche.
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Que práticas então o Anti-Jornalismo (no sentido, cada vez mais claro inclusive para mim, em que se diz Anti-Psiquiatria) pode estabelecer na contra-mão disso? Não se trata de negar a Idade Industrial nem a capacidade de velocidade e penetração da Notícia, como não se tratava de descartar o uso de medicamentos neurolépticos nos anos 1970, sem os quais a Reforma Psiquiátrica seria impraticável. Se tratava de entender que, embora parte fundamental e inevitavel do tratamento, não era nos medicamentos que este residia, e mesmo poderiam haver tratamentos de psicose que não passassem pela prescrição medicamentosa; o mesmo para a Notícia: é fundamental que ela exista, mas não dependemos dela (o que a retira da posição de fetiche, voltando a ser mera mercadoria), e é preciso ir assim além dela. Isto é: resgatar nosso direito a interpretação, inclusive mutua e coletivamente realizada – e isso os blogs já servem bem.
Mas há outra postura prática que eu tomo desde o contato direto com o fato. Os Jornalistas tem mania de anotar tudo para “não perder os detalhes importantes” quando vão apurar um fato ou fazer uma entrevista – e é justamente aí que o principal se perde, e o Fato vira mercadoria. Eu jamais anoto nada quando estou a “cobrir” algo – uso da atenção flutuante, oriunda da Psicanálise, que justamente me permite reter aquilo que fala ao meu desejo de analista ou mesmo ao meu sintoma enquanto sujeito. Só aí é que o fundamental não-fetichizado se fixa.
Falei “cobrir”, contudo o termo é mal colocado aqui. Cobrir, em Jornalismo, implica em sistematicamente buscar os fatos – não há, assim, atenção flutuante nem associação livre: age-se como operário-padrão. Eu jamais “busco” ativamente os fatos; ao contrário, me permito estar neles quase por acidente, o que é parte indissociável da técnica de associação livre e de atenção flutuante inventada por Freud, e que ao meu ver caem a perfeição no desmonte da instituição Jornalismo tal qual cairam, mas em outro contexto, no desmonte da instituição Psiquiatria: lá onde o Psiquiatra buscava insidiosamente sinais e sintomas, o psicanalista apenas se permite escutar; lá onde o Jornalista apura (“só pela usura de falar de mim“, diria Thiago Kalu), o Anti-Jornalista deve se permitir testemunhar.