Esse nosso Sub-Marxismo de Senzala
Acabou que o Movimento Exú Tranca Ruas (ou Revolta do Buzu 2011) se reduziu a uma querela meramente sobre o preço da passagem de ônibus, liderada de modo acrítico por jóvens lideranças partidárias supostamente de esquerda. Isto é: um levante subserviente, como não foi o de 2003, em que se luta arduamente (e sem alegria) por um navio-negreiro R$00,20 mais barato. Ou, eventualmente, gratuito – porque ser torturado de graça ao voltar pra casa é muito mais justo do que pagando por isso, né não?
Tentei, através de sua comunidade no Orkut (e é claro que um movimento que se concentra no “Shopping Piedade das redes sociais” não podia dar em que prestasse), inserir questões mais hodiernas – sem sucesso, e tanto pior ainda. O grau de alienação (no sentido marxiano do termo) urbana desse povo é total.
Exemplo: por duas vezes abri um tópico lá tratando do Programa do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) que distribui (boas) bicicletas (urbanas! – com paralamas, protetor de corrente e tudo mais) para alunos da rede pública de ensino irem de casa ao colégio. O projeto começou no primeiro governo de Rosalba Ciarlini (PFL) no Rio Grande do Norte, mas foi recentemente adotado pela esquerda. A aquisição das bicicletas, financiadas, é por conta dos Governos Estaduais. Pois bem, abri post sobre isso: numa primeira vez foi apagado “por fugir ao tópico da comunidade” (oi? eu achei que se estava a debater o direito da mobilidade barata e eficiente para a população estudantil); numa segunda vez, foi sumamente ignorado.
Num outro tópico, sugiro o boicote ostensivo, sistêmico e de longo prazo às empresas de ônibus – como o Levante de Montgomery, liderado por Rosa Parks e Martin Luther King nos EEUU dos anos 1950. Isto é: que o usuário de ônibus passe a agir como alguém que é cliente destas empresas, mas não depende delas – e só vai usar e pagar por seus serviços se, e quando, lhe convier. Adiantou o que? Um dos membros disse que era uma “utopia” minha – como se “utopia” fosse xingamento, como se eu não fizesse isso todo santo dia, como se não houvesse precedentes históricos de sucesso; outro disse que já faz isso “porque usa carro”, e disse que eu nada faço a não ser escrever (quando o mero uso diário de bicicleta tem mais efeito combativo na desordem da mobilidade do que mil passeatas por navios-negreiros 20 centavos menos caros). Aqui, cabe uma nota: é curiosíssimo como é tido como signo de coragem o participar de ações grupais, em que por isso reina o anonimato, e não a decisão solitária (embora às vezes feita por muitos sincronizadamente ao mesmo tempo) de governar seus desejos e re-planejar sua vida individual. Freud explica.
O nível de debate é este. Houve outras pérolas: um que acha que ler Milton Santos é dispensável para pensar a mobilidade e a ocupação do solo de Salvador, já que a tese dele “não trata de Salvador, mas apenas de um trecho da cidade” (no prefácio, Milton Santos deixa claro que os 4 quarteirões que ele aborda representam não apenas a cidade, ou o estado, mas trechos de outros estados como Minas e Goiás, bem como de outros países do outro lado do Atlântico Negro e mesmo de Portugal uma vez que nada sabemos de Lisboa anterior ao terremoto e reconstrução por Pombal, a não ser através de Salvador). Isso quando não caia num consumismo explícito da Indústria do Medo: “usar bicicleta é perigoso!” – aquele mesmo discurso que vende abadá e bloco de corda, e aliás o Revolta do Buzu 2011 nem se dá conta de que o Axé-Sistem faliu: em um tópico se discutia quantos manifestantes iriam para o cada vez pior Festival de Verão…
Outra pérola: comentei a afirmação ridícula de João Henrique Carneiro, des-prefeito feirense de Salvador, em sua entrevista no Jornal Já Vai Tarde esta semana. Diz o Des-Prefeito Semi-Epiléptico: “será que não lembram que hoje a única cidade que não paga estacionamento em shopping é Salvador?’”. Um dos participantes do Exú Tranca Ruas veio dizer que “era bom, porque era menos um transtorno pra cidade cobrar estacionamento”. Quer dizer: na cabeça dessa molecada, usar carro a-migué é um direito inalienável. Ponderei que esta atitude de João Henrique foi de antes de ele ser Prefeito, e visava coibir uma série de ações corretas embora tímidas do então prefeito Antônio Imbassahy que visavam aumentar a pedestrabilidade da cidade (entre elas estão a extensão da Zona Azul até o Itaigara, as reformas do Largo Dois de Julho e Baixo Pituba, etc.). Ah!, me acusaram de carlista…! Quer dizer que ponderar sobre a história não vale? “Assim eu não brinco mais – só se for com ideologia cega e vazia”, parecem dizer os membros do Revolta do Buzu 2011.
É não apenas desconhecimento de causa – desconhecimento se cura por esclarecimento. É um “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe” – aquilo que Goethe chamava “ignorância em ação”, e nada pode ser mais destrutivo. O Revolta do Buzu, como o Rei Lear de Shakespeare, ficou velho antes de se tornar sábio: perdeu alegria, vitalidade, espontaneidade, sem ganhar massa crítica e visada estratégica.
É assim um Discurso de Servidão Voluntária, muito similar a Revolta dos Ex-Escravos de Barbados (que se rebelaram com uma demanda peculiar: voltarem a ser escravos). Este movimento não quer ter de volta o direito a cidade e a mobilidade: quer o direito de depender do motor, a preços mais módicos. Qualquer semelhança disso com revoltinhas medioclassistas carrocêntricas contra o aumento do preço da gasolina não é mera coincidência: o proletariado, nos lembra Engels, tende a agir como uma caricatura burlesca da burguesia – uma cópia da cópia, uma vez que a burguesia apenas rouba da aristocracia seus modos, esvaziando-os de princípios. Ou, dito de outra forma: o Revolta do Buzu, que poderia ser um passo a mais de flaneury, se não podia ser de dandismo, nada mais foi do que uma marcha-a-ré francamente lúmpen, sem se dar conta disso – afinal, Marshal Berman pra esse povo deve ser marca de roupa de grife.
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