Exú reclama as ruas (?)
Por força da circunstância de que esta semana se tentou reorganizar algo similar ao que foi a já mítica Revolta do Buzú (Salvador, Bahia, setembro de 2003), venho tratar do assunto. Por um lado, porque esta tentativa de reacender a chama viva das batalhas campais contra a ditadura carlista (era disso que se tratava, na prática) é louvável; por outro, porque o modus operandi do atual movimento me parece pseudo-sofisticado, e por isso menos potente e menos eficiente. Sinal dos tempos.
Primeiro, é preciso contextualizar as situações. O episódio de 2003 vinha na sequência de levantes populares contra o carlismo, cujo momento maior foi o 16 de maio de 2001 – em que as tropas da Polícia Militar do des-Governador César Borges invadiu um campus federal e espancou adolescentes. O reitor da Universidade Federal da Bahia então era o PFLista Heonir de Jesus Pereira Rocha – PFLista, e amigo de ACM, mas antes de tudo reitor, e dado o ocorrido, rompeu com o Malvadeza Cabeça Branca e liderou no dia seguinte uma passeata ainda maior por sua cassação, peitando pessoalmente PM truculenta, reacionária e mal-treinada de então.
A Revolta do Buzu de 2003 foi sobretudo um tiro-de-misericórdia no carlismo. Sob todos os aspectos. Uma PM envergonhada de sua atuação dois anos antes, e recém-saída de uma greve inter-estadual que jogou o des-Governador César Borges no limbo lamacento de onde jamais deveria ter saído, em geral foi pacífica, quando não abobalhada mesmo, com a estudantada. O prefeito Antonio Imbassahy, carlista de ocasião mas social-democrata in pectore, dispôs-se a negociar e rejeitou qualquer hipótese de reprimir o movimento (cabe lembrar que são dele as últimas intervenções urbanas físicas consistentes na cidade, como a reforma do Largo Dois de Julho e do baixo Pituba, previlegiando o pedestre; e que sob sua administração se iniciou a revitalização do bairro do Comércio e não houve expansão desordenada no vetor norte da península soteropolitana. Ou seja, de um ponto de vista sócio-econômico, nunca foi carlista).
Havia ainda uma vantagem de retaguarda: não eram “estudantes” em protesto contra “ônibus”. Esse era o pretexto. A real situação era de uma sociedade inteira contra uma tirania proscrita e moribunda. Uma movida madrileña, com dendê – e que em última instância cuminou no atual Pós-Axezismo (não por acaso um dos videos de divulgação da Revolta do Buzú 2011 é com canção do Baiana System). Professores, inclusive de escolas particulares, incentivavam os alunos a irem nos protestos e a irem fardados porque “com roupa de colégio, polícia não te bate”.
A adesão então era massiva, e não apenas por o aumento da passagem de ônibus (e os protestos) terem ocorrido em período de aula (diferente de agora, nas férias escolares). Cada colégio ia até o colégio mais próximo, interrompia as aulas e chamava pessoal e presencialmente outros alunos, formando assim grandes massas – e mais importante: sem líderes!
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No boca-a-boca, com a mídia carlista escondendo o que se passava, sem apoio externo nosso por outros estados (sequer Pernambuco, que marchou junto em 2001 nas greves das polícias civil e militar), se fez levantes monstruosos!
Este ano se faz video, twitter, comunidade no Orkut, perfil no FaceBook, o escambau – e não há a mesma força subversiva de então. Por quê? Primeiro, talvez pelo motivo que nos lembra Luiz Favre: a revolução, que não era televisionada, tampouco será twittada ou blogada (o que não quer dizer que bloga-la e twitta-la seja irrelevante: se o fosse, eu não estaria aqui escrevendo). Não chega a ser genial esta conclusão: a primeira-dama da Bahia, Fátima Mendonça, e a atual senadora Lídice da Mata, no encontro do governador e candidato a reeleição Jaques Wagner com blogueiros em seu comitê, disseram: militância online é bom pra formar massa crítica, mas é no olho no olho e abraço no abraço que se conquista gentes e idéias.
Motivo pelo qual – e aqui vai meu quinhão – este blog não é fim, mas meio. É fundamental que haja um espaço de crítica e divulgação online da Reforma Cultural Bahiana, mas só porque tem efeitos na realidade: porque posso me sentar ao lado de Ricardo Castro num concerto da OSBA e discutir, presencialmente, os rumos da orquestra sinfônica de meu estado; porque posso aguentar o choro de um então desconhecido e hoje amigo íntimo Pedro Pondé vilipendiado pelo modo com que O Círculo se desfez.
Sinal dos tempos, também nisso a pós-modernidade acabou: está claro para qualquer não-idiota que a representação da realidade não é maior nem melhor que a realidade ela mesma, com todas as imperfeições e impossibilidades mortíferas que tem.
Em 2003, havia o que disse acima: o mão na mão de um estudante com outro, de uma escola com outra, dos professores com seus alunos. E isso não é substituível, sequer suplementarmente, por redes sociais de internet.
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Sofisticou-se assim os métodos, que podem até ampliar o raio virtual de atingidos pelo clamor do sair as ruas – mas diminuem suas potências (oh, paradoxo foucaultiano!). Mas, principalmente, se começou a estabelecer lideranças e regras que retiram o caráter massivo, espontâneo, festivo e anárquico, absolutamente fundamental, do movimento de 2003.
E pior: estreitando tematicamente a reinvindicação. Em 2003, atacar o péssimo sistema de transporte coletivo de Salvador era um meio, e não fim, de atacar a ditadura carlista, a inexistência de políticas culturais reais no estado e na cidade, o Axé-Sistem – uma série de circunstâncias nefastas concêntricas, mas com criticidade, longe do “mudar tudo-isso-que-está-aí” tão medioclasse pitubana.
Até mesmo laivos de reivindicação por mais espaço pedestre (que no entanto já era dado por Imbassahy em 2003, mas não o é por João Henrique hoje) ou contra o modelo motorizado de transporte compareciam na Primeira Revolta do Buzú de sete anos atrás. Hoje, não se vê nada disso.
Ao contrário: essas regrinhas do “protesto com bons-modos” e do instituir lideranças vai contra modalidades de reivindicação similares do mundo todo, desde o Reclaim The Streets de Londres (bem proletário) ao PlayingOut, das mães de classe média dos subúrbios de Birgmingham. O movimento bahiano atual acabou tendo um vetor mediocrizante e concêntrico, em que a discussão gira em torno apenas do preço da passagem e da qualidade ou não do ônibus. Considerar que o ônibus é uma merda em si, e que a solução depende de trilhos (bondes por exemplo, e não metrô)? Nem cogitam! Boicotar os ônibus no longo prazo substituindo parcial ou totalmente seus deslocamentos individuais por bicicleta? – a cultura da Indústria do Medo impera, e os faz endeusar os rinocerontes motorizados sagrados, ainda que coletivos. Questionar a política de zoneamento e uso de solo de Salvador, e com isso engrossar as fileiras pela deposição do anti-prefeito jeca-feirense João Henrique Barradas Carneiro? Nem pensar.
Houve uma modernização de meios e métodos, o que não é necessariamente bom, na Revolta do Buzu. Houve a adoção de um nome identitário regional, Exú TrancaRuas, o que é ótimo. Mas não houve uma internacionalização da questão, de modo inclusive a acirrar a peculiaridade regional, nem um aprofundamento crítico das causas, princípios e objetivos. Parece, enfim, que os que tomaram a frente de ressucitar a Revolta do Buzú precisam ler mais a excelente Coleção Baderna da Conrad Editora (em tempo: não ganhei jabá pela divulgação). Ainda assim, têm todo o apoio deste blog e, assim que eu puder, minha participação pessoal.
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