Artefatos Vitorianos para Uso das Cidades – II
As árvores artificiais portáteis
O século XIX, que viu nascer as metrópoles como as compreendemos hoje (em substituição a vilas medievais de grandes proporções, anteriores) também viu a mudança drástica dos modos de vestir e de caminhar. As cidades-castelo ou cidades-fortaleza (Salvador é um excelente exemplo) tinham boa parte de seus cidadãos livres carregados em liteiras por escravos; o trânsito pedestre se dava quase sempre dentro dos enormes jardins privados e palácios – abrigados naturalmente do sol e da chuva.
O advento da burguesia e da população assalariada livre abole as liteiras (em parte substituidas primeiramente pelos cabriolés de praça de pequeno porte, avós do táxi de praça) e faz ampliar muitíssimo o trânsito pedestre extra-muros. Anda-se muito, anda-se junto, anda-se longas distâncias – por vezes com pouca ou nenhuma cobertura vegetal.
Busca então, o homem da Bèlle Epóque, utensílios que, na cidade, lhe sirvam para a atividade similar às do campo. Do pastor que arrebanhava ovelhas usando um cajado, surge a bengala de castão – auxiliando o mancebo garboso não apenas a manter-se empertigado após meia dúzia de quilômetros, mas a discretamente acelerar-lhe o passo a medida em que diminui seu esforço e o força a manter o rítmo musical em alegro com brio. Aliás, não é uma coincidência que a bengala seja similar a batuta usada em concertos eruditos palacianos na Idade Clássica – substituida, na Idade Industrial, para os concertos em teatros urbanos, pela pequena varinha de mão atual (Bach, lembremos, regeu Brandenburgo a primeira vez com estocadas no chão, e mesmo Haydn; Mozart começou a usar a batuta-varinha, mas nos ensaios optava pelo cajado; Beethoven só adota a forma discreta e moderna do meneio de mãos a partir da Sinfonia Pastoral).
O leitor poderá pensar que também o assovio (e, por que não?, o formato-canção – este não sendo mais do que a forma-sonata brincando no quintal) surgiu aí: ah, o prazer de andar por entre gentes desconhecidas, altivo e célere, enquanto se marca o passo cantarolando uma melodia, com ou sem letra! Prazer que não tinha o escravo da liteira, alguns parágrafos acima, nem o tinha seu amo, dormitando calorento entre panos cujo calor os abanadores gigantes de outros escravos não davam conta de extirpar.
O abano e a sombra portáteis, o Brasil conhece sua origem mais do que ninguém: estão nos maracatús-nação de baque-virado do Recife, nas congadas do Vale da Paraíba e de Minas Gerais, nos afoxés bahianos, em alguns sotaques de bumba-bois maranhãenses, em variantes específicas dos carimbós do Pará. Sua origem, nobre, claramente não é européia – onde não havia tanto calor a espantar; antes, é ela yorubana-nagô, marajoara-tapajônica, muçulmana-hauçá.
Baldaquinos e abanadores não desapareceram com a Idade Clássica; tal como as liteiras que, junto com as carruagens diminuíram seu tamanho e seu caráter de propriedade de posse privada, além de substituirem a tração humana pela animal, dando origem ao fiacre – tal como as liteiras e carruagens, os abanadores e baldaquinos apenas se tornaram menores e próprios para o auto-uso: leques e sombrinhas.
Se é verdade que ainda nos corredores de Versalhes as duquesas se abanavam a si mesmas, o faziam mais como modo de mostrar-esconder o colo desnudo. É nas ruas e nos bancos de praça que a jóvem dama se abana para respirar depois de um longo trote; o rapaz, em seu lugar, retira do bolso o lenço (que nos palácios de um século antes, serviam apenas para salamaleques barrocos) e enxuga a têmpora afogueada.
A sombrinha e o guarda-chuva, tidos em geral como forma de proteger da água que cai, vêm antes de afastar o sol que assola, com o cidadão proporcionando a si mesmo a sombra que lhe falta. Em cidades tropicais e equatoriais ainda é visível este uso, como nas fotos deste post, tiradas em Belém do Grão-Pará.
O século que viu nascer a vida urbana foi engenhoso o suficiente para unir dois ou três destes artificialismos vegetais, tão art-nouveau, num só objeto: a sombrinha da moça pode lhe servir de bengala (ao contrário dos rapazes, diminuindo o ritmo de seu andar, e fazendo-a balançar de leve a anquinha e os ombros), bem como pode a bengala do moço ser um guarda-chuvas – que, com leve alça no lugar do castão, o auxilia a pongar em bondes e ônibus de tração animal, ou mesmo em tílburis, se precisar perseguir algo clandestinamente um objetivo inconfessável.
E que tal uma pequena copa pseudo-vegetal que proteja cabeça e olhos, sem ocupar as mãos: o chapéu, pois não? Existente já na corte da França pré-Revolucionária, lá servia (como o leque e a bengala) apenas para ostentação de status: um nobre podia adornar sua pesada peruca com, às vezes, mais de um chapéu, bastante disfuncionais ambos os três. Na cidade hausmaniana, os homens optam por cabelos curtos (transferindo para barba, bigodes, suíssas, cavanhaques e pêras sua identidade de classe) e cartola, côco, posteriormente o panamá (nesta derivação do Nouveau que é o Art-Decô da década de 1920); as senhoras passam a usar coques, as meninas cabelo ao comprido nas costas. O próprio chapéu pode ser usado para abanar-se, ou a outrem; e se não o for (caso mais comum entre as mulheres, que necessitam de alfinetes para fixá-los na cabeleira), pode-se adaptá-los em chapéus dobráveis – leque e chapéu a um só tempo.
Toda esta riqueza de simplicidade e eficiência tecnológica, coetânea da bicicleta, só pôde advir porque as cidades não eram ainda dominadas pelo automóvel, pela máquina. A civilização conhecia e imitava a botânica (e, ver-se-á em breve, a animalidade) suplementarmente, e sem buscar substituí-la de todo. Nada disso seria possível se, nas ruas de então, ao invés de gentes houvesse uma manada de rinocerontes motorizados e desembestados a solta, como hoje – época em que, no entanto, estes utensílios continuam a ser espontaneamente usados, sinal de que seu design está longe de ter sido criado para a obsolência…
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